quarta-feira, 27 de junho de 2007

não é o amor que interessa

Não é o amor que interessa a B., mas antes a habilidade do outro corpo para o prazer, alguém sem preconceitos, que abocanhe, que insulte, que grite muito, que goste de dar e receber ordens. Esse outro corpo adormeceu no lado mais fresco da cama, onde o lençol ainda cobre o colchão. As veias e os músculos de B. continuam a pulsar, os dedos dos pés libertaram uma descarga que começou no sexo e que se alastrou para o estômago e depois por todo sistema nervoso. A carne cresceu e voltou a encolher ao redor dos ossos, os pulmões sossegam, há um risco de sangue no lábio inferior que B. limpa com a língua. A roupa e os sapatos são apanhados do chão e B. veste-se na cozinha, diminuindo a velocidade dos movimentos para lhe reduzir o som. Limpa o gargalo com a palma da mão, bebe água pela garrafa e certifica-se que recolheu todos os seus vestígios pessoais no apartamento. Sempre que B. encontra um corpo virtuoso guarda um endereço, um número de telefone, qualquer referência. Mas quando os corpos – como nesta noite – apenas servem de alimento, recusa repeti-los.

Em casa, B. senta-se na cama, diante do espelho, e masturba-se, fechando os olhos depois para recorrer às imagens selecionadas em outras noites, várias pessoas numa cama, uma praça pública durante a noite, ou uma varanda e vizinhos que espreitam, às escondidas, na janela do edifício do outro lado da rua. Antes de adormecer, abre um livro erótico, escolhe um capítulo e começa a se tocar, procurando sintonizar o orgasmo com o orgasmo da protagonista. De manhã, na banheira, com a água escorrendo na pele, atravessando o sexo, B. já não sente repulsa do corpo que conheceu na noite anterior, e começa uma vez mais, a escolher imagens, gestos, palmadas, frases, que utiliza quando se manipula à procura de mais prazer.

Na rua, no emprego, num supermercado, B. persegue pessoas com quem quer se deitar, ou apenas ficar em pé, contra a parede, no banheiro de algum restaurante. É um exercício quase sem interrupções. E mesmo o trabalho serve apenas para conseguir dinheiro e poder, é um instrumento de conquista, uma outra maneira de conhecer pessoas para consumir. A noite, entra num bar onde casais procuram parceiros, e abusa do álcool para eliminar o desconforto de se aproximar de estranhos. Os diálogos perdem a importância, e os jogos verbais de sedução substituem-se por um pormenor, às vezes uns óculos, as mãos, os sapatos, objetos, ou apenas linhas de carne que aparecem entre a roupa. A exigência de corpos sem imperfeições, começa a desaparecer. Depois de tantas experiências, sabores e lugares. Importa encontrar sempre algo de inédito, porque a repetição destrói a intensidade do prazer.

No carro de um casal, B. despe a mulher e aprecia a atenção do homem que aproveita os semáforos vermelhos para observar o espetáculo do sexo no banco traseiro. Quando tudo termina, ainda antes de chegarem ao motel, B. salta do carro e corre pelo passeio sem se justificar. Continua a correr até entrar num táxi, fechar a porta e sentir as marcas da boca e das mãos da mulher nas próprias pernas, no rosto, pescoço, espalhando-se no ventre e nos mamilos. Esta é a fuga que executa sempre após a violência, o descontrole, a luta, o triunfo e o temporário estado de graça. Observando o taxista no retrovisor, B. puxa uma meia pela superfície da perna até alcançar a carne da coxa. Prende o cabelo e empurra os lábios contra o batom. Não é amor que procura, uma casa, uma família, alguém que a espere ao anoitecer. Os pedaços dos outros chegam para aliviar a solidão. E enquanto descansa os pés do salto, B. analisa as pessoas que caminham no passeio, escolhe alguém que consiga cansá-la mas que depois a deixe dormir sem se aproximar do seu corpo durante o sono.

(B. realmente existe, a inicial do seu nome nem é esta, achei que B. seria mais obscena que a sua própria, ela aprovou. O conto acima foi uma homenagem que lhe fiz. Como a conheci? Uma noite me puxou para um canto e foi clara comigo – “não estou a fim de você”, disse ela, “estou a fim de dormir com você”) Foto: Ricardo Pereira/ modelo: Renata Punk