domingo, 3 de junho de 2007

esboço de uma teoria sobre o fogo

Em primeiro lugar demora a entender-se o fogo. Pela sensualidade com o qual se move é natural que nos sintamos atraídos. Uma das características da inocência é desconhecer os riscos. Se o tempo nos ensina alguma coisa é a sobreviver com o mínimo de cicatrizes possíveis. A bem da verdade nem sempre poderemos ser tão precavidos: há um instante em que o risco parece conter mel. Ficamos como que hipnotizados. Por isto conto aqui comigo umas três ou quatro cicatrizes, mas não é disto que se trata aqui: voltemos ao fogo.

Em segundo lugar é providencial que nos queimemos um pouco. A curiosidade faz com que estiquemos o dedo. Os mais sensatos retiram-no rápido tão logo percebem o que aquela dança sensual contém de serpente. Os mais poetas precisam de mais provas do seu veneno por mais que a dor estale dentro deles. Entende-se porque mais tarde recorrerão ao fogo quando palavras como “paixão” e “desejo” não forem mais tão elucidativas.

Em terceiro lugar é preciso que se goste do que se está fazendo. O fogo é uma arte e contempla-lo nos interessa desde criança. A noite quando nos protege do frio e afugenta os lobos ganha as feições de um rosto amigo. Entretanto seu humor pode variar de uma hora para a outra e o que antes nos dava segurança pode tornar-se uma grande ameaça. Por isto reconheçamos a necessidade de entender o fogo antes de expia-lo. Basta uma faísca para tudo vir a se perder. Da mesma forma que se explica o amor pode se explicar o fogo.

Por isto o melhor é que se não for necessário controla-lo que se assuma os riscos, deixe-o consumir-se até o fim, assim é que muitas brincadeiras ganham graça. Pense todo fósforo que se risca contra a caixa como o primeiro passo que se dá em uma terra firme depois de semanas no mar à procura das Índias. Por mais que se deseje pisar o chão ainda existe o desconhecido a nos fazer hesitar. A humanidade é fruto de uma necessária ousadia.

Diz-se do mistério – e muito bem – que o que nos atrai nele não é desvendá-lo mas imaginá-lo do que se trata. Li muitos livros que começaram assim, o mesmo posso dizer de algumas mulheres. Depois o que vem em forma de palavras ou de respostas nos dadas contra a parede quase sempre nos surpreende porque nem metade do que sonhamos. A vida é sempre mais interessante que o mito e por mais violenta que seja ainda dá uma boa briga. Se é necessário que hesitemos diante do fogo não podemos por conta disso nos curvarmos diante de sua dança. Por mais sensual que seja a dançarina de flamenco ela é de carne e osso e sente e sofre e chama. Aprendamos a "tocá-la". Metade da vida consiste disso. A outra metade que cada um escreva conforme lhe apraz.