domingo, 27 de abril de 2008

cinco horas, quase seis

Sim, suponho que continuo (ainda) à espera que chegue. Que venha: e sorria. Dirá (talvez) que sentiu saudade e olhará para mim em silêncio, durante um instante; e depois? Um beijo, breve, na face ou na testa; e pegará o copo de água sobre a mesa, beberá um pouco. Depois, ficaremos em silêncio, olhando-nos sem pressa nem embaraço, confortáveis. Sem nada para dizer, para acrescentar.

Enquanto fixo o olhar no vazio, por momentos incapaz de controlar (de perceber) os pensamentos que me distraem e alienam, lembro abruptamente o que me explicaram: o carro permaneceu durante horas debaixo das árvores, imóvel e silencioso, invisível, enquanto outros carros passavam pela estrada, fulgurantes ou lentos, ruidosos (a noite avançava, escura e sombria, úmida); e você: morto; eu: desmaiada; é o que contam (vozes sussurradas e pesarosas, comovidas), por isso talvez seja mesmo verdade. Estivemos ali todo aquele tempo (cinco horas, quase seis), juntos; ambos mortos. Mas eu (dizem) decidi acordar (não sei bem porquê, para quê); e você: não.

Olho em frente, refugiada nos óculos escuros (que me deu de presente no meu último aniversário, lembra?) e envolvida pelo ruído matinal do café, enquanto vou pensando – uma vez mais – no que me contaram e explicaram, no que sou incapaz de recordar (pergunto-me como teria reagido se realmente tivesse acordado e visse você, a meu lado, morto). E o cigarro vai-se esfumando, lentamente; talvez beba um pouco da água, daqui há pouco. Passam pessoas perto de mim mas ninguém me olha. O chá deve ter esfriado: esqueci-me de bebê-lo. Continuo a olhar em frente, é tudo o que consigo fazer.
Foto de Nelson Luis Abrahão.

sábado, 19 de abril de 2008

"onde vamos esta noite?"

Esta noite? Esta noite eu ainda não sei. Talvez algo honesto para variar. Falemos de coisas que sabemos, que realmente importam, que achamos melhor adiar, cansei de evitar polêmicas, destas festas e lugares onde se está apenas por estar, apenas para que pareça tudo bem no mundo mesmo que ele esteja a ponto de desmoronar. Podemos descobrir o que queremos para o resto de nossas vidas num segundo e podemos, no segundo seguinte, dizermos a nós mesmos que tudo aquilo não passa de uma grande bobagem e que o melhor é esquecermos. Eu estava aqui observando você enquanto se vestia e meu desejo era que nada mais houvesse, o tempo principalmente, este disco giraria eternamente, mas que nem a sensação de que era para sempre houvesse, apenas que nada nos interrompesse, nada definitivamente. E não haveria mais onde vamos esta noite mas apenas esta noite.

Mas você quer ser feliz do seu jeito, diferente do que eu sinto e quero para mim, acho justo, não posso dizer tudo como deve ser, aqui eu só escrevo, ao meu redor o mundo existe acontece, é nele que você existe respira, é nele o seu cheiro, hoje não preciso acordar de nada disso, posso simplesmente esticar o braço e tocá-la – você se vira, pergunta o que foi. Temos tempo, me diz, acha que é só isso o que eu pretendia e que podemos fazer rapidinho.

O mundo é um lugar onde aprendemos a nos comportar, não é como quando não nos importamos com o que vão pensar. Tenho segredos guardados a meu respeito que não adianta você perguntar, nem eu mesmo sei, não são bem segredos, são sentimentos que ainda não chegamos a experimentar, reações que não temos como prever, quanto mais controlar, é por isto que não sabemos que é amor quando já é, queremos explicações, já vivemos muita coisa, demoramos a aceitar o que é novo em nós, fazemos comparações com o passado, com o que deu certo, com o que deu errado e acabamos tornando complexo aquilo que só deviamos aproveitar. Vamos a muitos lugares, conhecemos o mundo, pessoas, o que conversar; para no fim da noite voltarmos ao mesmo lugar: você, eu, quando não nos importamos com o que vão pensar.
Foto: Ricardo Pereira/ modelo: maíra.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

faz calor depois faz frio

“... posso fotografar o seu silêncio e imaginar o que está se passando...”

É por isso que eu não julgo. Porque eu não vivo a sua vida e você não vive a minha. Não tem como saber. Pode me parecer tolo o modo como você se entrega, o seu código de regras, as suas soluções e desculpas para o mundo mas eu não vou dizer como eu agiria se fosse comigo porque eu nem sei direito se o que considero o melhor para mim é realmente o melhor para mim e o que eu acabo fazendo no fim. Eu tento, às vezes consigo. Amanhã falaremos disso. Hoje estava pensando se não podíamos escapar um pouco, rir do que não sabemos, aprender novas músicas, o jeito como se dança.


Não, eu não vou salvar você de nada. Não tenho essa pretensão. A vida é muito maior do que eu posso ou sei, nela também só arrisco. Pode ser que eu faça sentido para você e por isto me queira por perto, na sua cama, nas suas idéias, aquelas que não acredita teria tido sozinha. Pode ser que não seja nada disso, me queira por muito menos, apenas para fumar um cigarro contigo do lado de fora da festa, quando parece que o tumulto interno está bem mais alto que a música – e um cigarro é só aqueles poucos minutos em que você deixa aquilo tudo esperando. É por isto que é tão difícil parar.


Tenho cometido erros e tenho escrito sobre isto. Parece-me o mais honesto a fazer. Não sei se conseguiria escrever só como as coisas dão certo, uma espécie de manual de como sobrevivi – a quem me dirigiria além de mim? Ninguém pode seguir passo a passo o que o outro sentiu para descobrir a melhor forma de agir, não existe receita, caminho a seguir, apenas tentativa e erro, eis toda a ciência. É por isto que você não precisa me explicar tudo, o que às vezes nem sabe como transformar em palavras, diga como quiser, não diga nada, posso fotografar o seu silêncio e imaginar o que está se passando. Gosto quando você me conta o que tem, gosto se isto lhe fizer bem. Por mais que precisemos um do outro, a gente é tudo o que nos resta, a gente é que sabe, a gente é que sente, para isso é que tem pele.
Foto: Renata Punk/modelo: maitê

terça-feira, 1 de abril de 2008

nostalgia de um minuto atrás

São tantas histórias acontecendo e a gente é só uma delas. O Tempo é um senhor implacável e viver tudo dura poucos segundos ‘dele’ por isto insistimos em transcendermos o instantâneo com fotografias de risos e festas, pequenos registros e farsas, se não podemos ser deuses pelo menos fingimos que temos algum controle, alguma resposta na ponta da língua para quando nos perguntam o que estamos fazendo da nossa vida. Eu estou mastigando a carne que consigo, enganando o estômago, fazendo poesia do que fica preso entre os dentes e assim quando olho para trás, restos de comida e ossos, não sinto que foi um desperdício, não cuspo no prato que como, tudo teve o seu sabor, lembro-me de todo o esforço da caça e relato em volta do fogo.

Entendo quando ela me pede que conte tudo de novo, que não a deixe fechar os olhos, acordar na manhã seguinte com a sensação de que não teve quando teve, teve e perdeu, teve e não soube dizer o que sentia, teve e não sabe que nome se usa hoje em dia, teve e parece que é só da poesia que eu deixei para ela como desculpa pela cama desarrumada, sua cabeça bagunçada. Eu sou muitas histórias, você outras tantas e quando a gente se cruza numa rua, numa noite, é só uma delas, podia ter passado direto e vivido outra mais adiante, mais fundamental menos insignificante, e não haveria esta nostalgia de um minuto atrás de quando se deixa algo cair e quebrar quando se acreditava com toda a força que o tinha em segurança apertado contra o peito.

É que nem tudo pode nem tem como caber na sua vida (no seu corpo e naquilo que ele sente, eu quero dizer) por isto você precisa de critérios, formas de selecionar aquilo que se ajusta perfeitamente a quem você é daquilo que não bate porque você prefere fazer uma idéia errada de si mesma para ter o que conversar de louco com os seus amigos, só que depois eles vão embora e ‘quem não é você’ fica sem ter para onde correr. Eu não sei de nada, desculpe se lhe passei esta impressão errada, não sei colocar ordem no mundo, tampouco o nome de metade do que você me pergunta, eu só sei que é madrugada, que você enfim conseguiu dormir e que amanhã quem sabe podiamos muito bem perder alguns minutinhos discutindo até onde pretendemos ir com isso.
Foto: Nelson Luís Abraão, Angela Noturna, 2006.