sábado, 27 de outubro de 2007

coisa de minutos


Lá estava você a examinar os livros, um pouco curiosa, um pouco enfadada; sondava demoradamente, por vezes apanhava um, abria ao acaso, lia umas frases, espreitava a etiqueta com o preço, pousava de volta. Não parecia procurar algo em particular; talvez estivesse apenas a matar o tempo, ou aguardava a chegada de alguém; ou talvez esperasse ser surpreendida por algum dos livros, talvez esperasse ser subitamente arrebatada por umas linhas lidas ao acaso, sussurradas pelo destino. Fui olhando, com curiosidade; espiando. Começando a gostar de você.

Havia muitas pessoas entre nós, conversas e risos: e você completamente indiferente, alheia; mesmo quando alguém passava junto de você e a tocava, não olhava. Pegava os livros, simplesmente; sem reverência, sem aquela devoção aflitiva que alguns desesperados dedicam aos livros. Por vezes, esticava o braço para pegar um livro mais distante e a manga da camiseta subia, revelando uma pequena tatuagem. Vira-a diversas vezes, sentindo-me desagradado: surpreende-me que mulheres bonitas deteriorem o seu corpo com manchas de tinta, com pedaços de metal, que escondam metade do rosto com ridículos óculos escuros, que segurem um cigarro entre os dedos convencidas de que isso é um gesto de sedução. Estive quase a afastar-me, decepcionado, quase vencido pelos meus preconceitos. Mas entretanto percebi que você se afastava, levando um livro na mão. E a segui, impelido pela curiosidade de descobrir qual fora, afinal, a sua escolha.

Dirigia-se para o espaço dedicado a música, onde caminhava entre as prateleiras, pegavas alguns CD's, conferia as promoções. Consegui então identificar a capa do livro que segurava; e não me decepcionara. De novo curioso, de novo seduzido, estudei você com mais atenção; a saia solta, revelando joelhos magros; a camiseta justa, delineando os seios; um cinto coberto de brilhantes; pulseiras, anéis; elegância cuidada, sedução discreta. Fui imaginando um quarto vasto e elegante, coberto de sol; e você nua, escolhendo cada peça de roupa, cada acessório; preparando-se para enfrentar o mundo, discreta e bela.

Apanhou um CD e procurou onde escutá-lo, permaneceu alguns minutos ouvindo o teu CD, dançando quase que imperceptivelmente. Depois, juntou-o ao livro e se afastou em direção ao caixa. Saia a balouçar, tilintar de pulseiras, cabeça erguida, passos firmes. Fiquei a olhar, enquanto se afastava: memorizando o seu corpo. Despedindo-me.

Corri para o fone de ouvido que ocupara, onde a sua seleção ainda estava ativa; fiquei ali ouvindo, sentindo a volúpia de estar a ser tocado por um objeto que acabara de ser tocado por você. E aí permaneci muito tempo, sentindo você através dos fones de ouvido, tocando você (recebendo o seu toque) através daqueles fones. Pensando que há sempre intermediários, há sempre mediadores que nos unem mas, simultaneamente, impedem a entrega total; porque tudo o que nos aproxima de alguém pode representar, também, uma última defesa, uma derradeira possibilidade de fuga, de adiamento, de suspensão. Como os corpos: permitem que os usemos para concretizar o amor que sentimos pelo outro, para satisfazer o desejo que sentimos pelo outro; mas são precisamente os corpos que nos impedem de alcançar o amor pleno, o amor além-corpo que secretamente ambicionamos, o amor utópico que deveria existir para além do corpo, da morte, do tempo. O amor infinito. Apertei os fones contra as orelhas e fechei os olhos. Pensando: tranqüiliza-nos saber que nunca seremos totalmente de alguém; mas entristece-nos saber que aqueles que amamos nunca serão totalmente nossos.

Antes tinha fantasias normais. Olharia você e imaginaria como seria afastar o vestido e lamber seu mamilo, imaginaria a sua textura, o seu sabor, a sua consistência, a sua elasticidade; imaginaria os seus suspiros, os seus gemidos, os seus silêncios; imaginaria que me apertaria contra você, talvez com violência, talvez com impaciência, talvez com ternura. Imaginaria a suavidade das suas coxas, a firmeza das suas nádegas. Imaginaria a sua roupa íntima, imaginaria se seriam fáceis de despir. Imaginaria como seriam os seus pêlos púbicos, se seriam incomodativos quando beijasse o seu sexo. Imaginaria como seria foder você no banco traseiro de um carro parado no estacionamento subterrâneo do shopping. Imaginaria o seu sorriso, no fim. Antes. Agora, cansei-me de fantasias que jamais se concretizarão. Olho alguma mulher bonita, como você, e imagino como se chamará. Nada mais.

Acabei por comprar o mesmo CD, o mesmo livro. Não voltei a ouvir o CD e o livro desinteressou-me completamente a partir da vigésima linha. Mas ambos me lembram que você existe, em algum lugar. Uma pessoa concreta. Uma possibilidade: tocamo-nos, por momentos, unidos por aqueles fones; e poderia ter acontecido, pode sempre acontecer mais qualquer coisa.
Foto: Ricardo Pereira/ modelo: Mirela.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

já estivemos aqui antes

Já estivemos aqui antes. Não me refiro ao lugar: o quarto, a cama, a manhã – me refiro ao instante. Lembra? Era só um tempo você disse, me vesti e a deixei na sua: em outra dimensão. Nunca acreditei que teria fim. Não teve realmente. Tampouco sei se foi melhor assim. Volto e é como se tudo estivesse como havia deixado. Estamos repletos de outros é verdade mas isto não nos preencheu como supunhamos – vamos pular a parte de ‘pelo menos termos histórias para contar’.

Espero só a hora certa para lhe dizer que não existe outra chance para além de nós – estamos condenados: nosso amor (que amor?, eu me lembro de ter zombado) é como uma velha cama conhecida confortável aconchegante para repousarmos nossos corpos cansados – cansados de tudo que apostamos e deu errado. Lá fora não há mais esperança para nós porcarias de românticos envenenados, fomos exterminados – só um exército de zumbis esfomeados. Eu não quero mais só carne, eu quero o que tenha sabor.

Você me olha com aquela expressão de quem já não se impressiona mais com a minha poesia barata (foi este o termo que você usou não foi? Está tudo bem, está perdoada, eu admito: é barata mesmo) mas quer adoraria muito se impressionar: se não estivessem todas as luzes acesas podia até chorar. Certo, a culpa não deixa de ser minha, eu já fui mais convincente mas depois que a gente repete esta ladainha troçentas vezes fica difícil soar convincente: por mais que tenham sido troçentas vezes do fundo do coração – acho que sou o único que ainda acredita. Você preferia, então, que eu não tivesse dito nada, se quero fazer amor me diria vem que faremos, amanhã acordaremos como se tudo fosse eterno novamente: não é assim que sempre fazemos? – me oferece um lugar embaixo do lençol e eu me deito.
Foto: Ricardo Pereira/ modelo: Bruna S.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

noites-brincando

“...Se eu morrer não chore não/ é só a Lua/ é seu vestido cor de maravilha nua/ Ainda moro nesta mesma rua/ como vai você?/ você vem ou será que é tarde demais?...”(de Lô Borges e Márcio Borges, Um Girassol da Cor do Seu Cabelo)

Depois de manhã é aquela bagunça. Não sei dos meus sapatos e você do sutiã. Estamos mais felizes do que preocupados. Você se espreguiça toda como se tivesse uns mil ossos. Eu descubro no meio do café que preparo que estamos sem açúcar. Preciso passar no supermercado na volta do trabalho. Mas quando dá seis horas só uma coisa passa pela minha mente: meter-lhe os dentes. Passo em frente de uns três supermercados e nem sei do que se trata. Estou com a cabeça no meio das suas pernas.

A gente é outro à luz do dia. Você ainda se permite ser um pouco mais maluca: faz caras e bocas na eca – mas eu ainda preciso fazer a barba e vestir algo mais para o cinza: ainda não cheguei na parte do curso em que ensino o uivo de allen ginsberg. Lembra como você tirou toda a roupa depois daquela aula? Eu estou queimando desde aquele dia.

Está tudo na minha boca, está tudo na minha pele e se fecho os olhos vejo sua dança selvagem. Nosso filme caseiro. Achei melhor não perguntar se voltamos ou se foi apenas um final de semana. Não me parece o mais importante agora. Gosto destes lances esporádicos que não estavam previstos. Guardei um pouco de você só para mim. Todo dia eu abro a tampa e respiro do seu jasmin. Parece que a vida nem é real mais, apenas parte do contrato. O que interessa mesmo são estas noites-brincando, alguns poucos dias abençoados. Nem todo o amor que eu senti valeu o esforço; você pelo contrário vale cada minuto suado. E pensar que não era para ser nada e por não ter a obrigação de ser nada é que ficou eternizado.
Foto: Ricardo Pereira/ modelo: Line.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

página solta

Nem tocamos no assunto "onde vamos esta noite?". Chovia mas não era esta a nossa desculpa. A gente precisava colocar umas coisas em dia e nem me refiro a cama se não temos feito outra coisa. Era em que capítulo do livro que ela se encontra que eu queria saber. Se ela pegou o espírito da coisa ou se está no caminho errado. Eu queria explicar o mundo desde o comecinho para ela, sem nenhuma pressa, parando nos nomes difíceis para que ela não precise perguntar depois. Ela fica mexendo no meu cabelo como se estivesse tentando me inventar um penteado novo. Sei que é só carinho, os olhos dela perdidos no meu me dizem isto com todas as letras, mas mesmo assim resmungo como quem se incomoda por ser amado. Ela vai até a cozinha, volta depois com um vinho fraco que eu só comprei porque ela gosta, recuso um gole mas não recuso um beijo, ela me dá e nos lábios dela o vinho é mais saboroso do que eu imaginava. A chuva parou, vamos dançando até a varanda, a noite me arrepia como um fantasma, não estou muito vestido, ela menos ainda, ficamos por um tempo, coisa de minutos, observando a cidade ao longe, suas luzes, como se ambos pensassem a mesma coisa mas esperassem o outro dizer primeiro para confirmar com a cabeça. No íntimo, sonhamos com uma explosão que nos afastasse de tudo, achando que só nós é que temos problemas, depois rimos do nosso egoísmo. Ela queria que eu lembrasse o nome de uma música que ouviu no rádio do carro certa de que eu tenho o disco, cantarola um pedaço mas nada muito compreensível, estava na ponta da sua língua e não estava, aquela história nos faz perder por alguns segundos o fio da meada, um novo beijo, reconciliador, nos fez voltar aonde tínhamos parado. A máquina do tempo só se desloca alguns centímetros para trás. Eu queria desenha-la nua como que para sempre, ela faz pose, estica-se na chaise longue como a maja desnuda de goya e eu que sou um simples mortal quedo comovido. Enquanto eu faço círculos com a ponta do dedo em volta do seu umbigo ela me conta sobre sua semana, coisas que eu já tinha ouvido, fingi interesse pelo que dizia, depois perdi a paciência e rolei com ela pelo chão da sala. Acordamos no que nos parece ser o paraíso de tão bagunçado e ainda estamos juntando as pistas para ver se descobrimos qual o nome disto. Foto: Line.

(Achei este velho texto. Ou melhor ela achou "perdido" entre suas coisas - como uma página solta. Escrito para e com ela. Leu, lembrou e me enviou. No mesmo "pacote" veio esta sua foto. Line das noites-brincando.)


terça-feira, 9 de outubro de 2007

o universo

Não tem ninguém além de mim. As festas acontecem, os erros e a crueldade: eu me sinto em outra. Entendo que eu não faça parte da sua turma: rimos de coisas diferentes – mas farei amigos com os poucos centavos que trago comigo – nunca precisei de mais do que isso. Sei o que é bom, o que fica e o que mexe com a gente: estes são os meus critérios de avaliação. Não, não estou lhe julgando, apenas dizendo por que “sim” e por que “não”.

Eu erro sendo um perfeccionista: exijo muito de quem só pensa em dar umas voltas por aí. Pergunto dos livros dos filmes das músicas. Eu não tenho culpa que sua vida seja vazia de sentido – eu descobri o que é felicidade e saiba que ela não é para principiantes: mas você tem estes olhos de quem já chorou muito e isto já é um bom começo. Se quiser que eu lhe explique eu lhe explico mas pode ser que eu destrua o seu mundo no meio do caminho.

Gosto quando chego e você já está aqui: abra a porta para que eu entre, me recebe com um beijo, mostra o que estava lendo e onde parou, ama ter milhões de perguntas para me fazer – como se eu soubesse tudo o que você não sabe. Creia – isto tudo que é tão bonito não está acontecendo com ninguém. A vida tem sido bem menos que isso e todo mundo acha que tudo bem. Mas eu não consigo pensar e viver como todos eles. Juro que até já tentei mas eu não consigo.
Foto: Ricardo Pereira/ modelo: Maíra.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

aqui é o seu lugar

Aqui. Aqui é o seu lugar – onde tudo se abre para que você entre, penetre fundo o que se diz e o que não se diz: tome conta, crie raiz. Você mesmo me disse que se sente cansado de tudo o que já fez girar, muitas vezes desordenadamente, pois bem, agora eu tenho a resposta que você precisa e ela está em mim: vasculhe – tudo o que ela diz é poesia aos meus ouvidos.

Vou fingir que é domingo, vou esquecer que há uma guerra acontecendo e eu sou o próximo da lista, quero, acho que mereço, cada velha surpresa, detalhe que podia me passar batido, centímetro por centímetro dela, um mapa que me faça sentido, leve e não traga, hoje eu não sei o que são amarras, medo e cuidado, contas a pagar, horários a cumprir, a liberdade de um homem está no corpo da mulher que ele ama – ela me convenceu disso, sua boca e mãos.

Faz silêncio no mundo e sei não faz silêncio algum, tudo explodiu e escapamos, tudo nunca existiu, estou sentindo que a vida até este instante foi só um sonho do qual acordei, você é que é real, tem cheiro e seu beijo o gosto da sua pasta de dentes, tudo é tão dentro dos meus planos que peço que me belisque. Tudo bem meu anjo falso esta é a hora de se perder, de se perder para todo o sempre, na sua vida não haverá outro caminho que não aquele que o traga aqui. Aqui. Aqui é o seu lugar. Em mim – tudo o que ela diz eu não canso de sonhar. Vou para onde ela está. Viajar é deixar o corpo leve, ser de quem ele quiser, dono do seu mundo. Não precisa percorrer distâncias enormes, nunca haverá país mais bonito do que o corpo da mulher com quem você dorme. Ela fala a sua língua e mesmo que ela não fale, não terão problemas para se comunicar – ela me convenceu disso, sua boca e mãos. Onde quer que eu esteja ela está – aqui, aqui é o seu lugar. Em mim – hoje eu não sei o que é tempo, sagrado e certo. Hoje eu só preciso descobrir.
Foto: Bruna S.