domingo, 27 de julho de 2008

só mais cinco minutinhos

Não sei o que ainda faço deitado aqui ao seu lado, se já tínhamos decidido que isto tudo estava acabado. Lembro de você dizendo que não havia nada de errado em um último beijo, somos adultos, já chegamos até este ponto diversas vezes, quando me toquei o disco já tinha acabado, fiquei preocupado com você, dirigindo aquela hora da noite até em casa, sugeri que dormisse aqui, fosse embora pela manhã, você concordou, fui buscar um travesseiro e um cobertor, quando dei por mim já tínhamos feito amor no sofá da sala, a caminho do quarto, contra a parede do corredor. Pergunta se pode ficar mais alguns dias com o livro que está lendo, digo que não tem pressa, que me devolva quando terminar, é uma história como você gosta, dessas que a gente não consegue largar, sei como é, estou escrevendo sobre isso agora, quando percebo já deu a hora que você me pediu para lhe acordar, chamo seu nome baixinho e você me diz ‘só mais cinco minutinhos’. Foto: Ricardo/ ela: Karen.

sábado, 26 de julho de 2008

a máquina do tempo

“... mas a máquina do tempo não existe...”

Estamos em 2003, cinco anos atrás. É uma noite de terça. Ninguém sabe que estou de volta, nem eu sei direito o que estou fazendo aqui. A música devia ser esta mesma, não me lembro bem, talvez a memória tenha selecionado outra do playlist. Sei que está alta e não consigo entender sobre o que se conversa, apenas passo o tempo enquanto você não entra. Você só chegará daqui vinte minutos, pergunto que horas são e sua irmã confirma. Podia me levantar e ir embora, posso fazê-lo agora, mas não sei porque espero, não está atrasada porque não combinamos nada, eu não sabia que você viria, sabia que você existia mas não fazia a menor idéia de como seria, sua irmã não me disse que eram gêmeas e o quanto com ela se parecia. As duas resolveram me pregar uma peça, enquanto você fingia que era ela notei algo que até então desconhecia, não sei se tive esta mesma impressão há cinco anos atrás, a luz era pouca, havia bebido, só sei que agora que tudo ficou mais claro, que meu índice de álcool no sangue é baixo, que você sentou à mesa depois de ter trocado de jaqueta com sua irmã eu percebo que há algo errado, há algo diferente, mas não em você, digo em mim, é que agora eu sei, já estou perdido, já sei que você vai embora, quando e como, já sei que cada segundo contigo foi mágico, já sei porque vim ao mundo, já sei que não terei outra chance como esta, que a vida é uma e que a sua foi muito curta para mim. Se eu tivesse me levantado (como posso me levantar agora) e ido embora (mas não me movo um centímetro), não a teria conhecido e hoje nada sentiria, nem carregaria você comigo para tudo que é lado, mas se não o fiz, não o faço agora, porque daria tudo para repetir esta noite, terça-feira, cinco anos atrás, mesmo que não me fosse possível evitar nada do que aconteceu depois, mesmo que viesse a dor de quando você nos deixou, mesmo que eu tivesse de olhar para você pela última vez, eu olharia, ali em silêncio a me despedir, por isso deixo que você me engane, que você pense que eu não sei que é você na minha frente novamente, procurando imitar o jeito de sua irmã falar. foto: Ricardo/ modelo: Helena.

domingo, 20 de julho de 2008

amarelo fica muito bem em você

“... e a solidão das pessoas dessas capitais...” (Belchior, Alucinação)

Na volta para casa começou a ficar preocupado. Já eram quase sete horas e o trânsito não andava. No som do carro seu cd preferido o irritava profundamente, buzinavam atrás dele, ele buzinava, mas tudo era em vão, não chegaria a tempo, já se conformava. Mas quem sabe ela também estivesse presa no trânsito, era uma esperança na qual se agarrava. Ela costuma chegar sempre vinte minutos depois dele, o suficiente para uma ducha rápida. Ontem foi dormir cedo, algo parecia preocupá-la, gostaria de ter conversado com ela, dizer que podia se abrir com ele, todos precisamos de alguém que nos escute, hoje de manhã ela levantou apressada, esqueceu de colocar o relógio para despertar, o copo em que bebeu seu suco ficou em cima da pia, metade do croissant ainda no prato, escolheu um vestido curto, ele viu no jornal que o tempo mudaria, será que ela sentiu frio?, ele chegou a apanhar duas vezes o celular para ligar e perguntar como ela estava mas desistiu, o que será que ela pensaria se o fizesse: ficaria brava, assustada ou agradeceria sua preocupação. Um carro como o dela parou ao seu lado, seria engraçado encontrá-la ali, diria ‘você não morre mais, estava pensando justamente em você’, ela sorriria sem entender bem do que falava e ele explicaria. E se parássemos naquele bistrô do bairro e comêssemos algo, talvez chegasse a sugerir. Ela com certeza toparia, melhor do que aquela lasanha de microondas que tinha para o jantar. Esticou o braço e abaixou o vidro do passageiro para enxergar melhor seu motorista. Não era ela. Examinou mais uma vez o relógio, imaginou onde ela podia estar aquela hora, talvez subisse as escadas devagar, tivera um dia exaustivo na agência, só queria sua cama macia para se atirar, ele faria uma massagem nos seus pés, depois contaria uma piada que um colega de escritório enviou via e-mail, tinha rido muito dela, mas talvez ela não gostasse, acharia um pouco vulgar, quem sabe esperasse um momento mais apropriado para lhe contar, toda mulher gosta de um homem que a faça rir, ele leu numa revista feminina enquanto aguardava sua consulta, quando chegou em casa, olhou-se no espelho e achou que tinha uma cara muito séria, pensou que adiantaria se mudasse seu guarda-roupa, quem sabe com cores mais alegres, ‘amarelo fica muito bem em você’, ouvia-a dizer. Enfim, o trânsito começou a andar. Ele só pensava no que ela vestiria aquela noite: se a rosa ou a azul. Não era a noite da preta. Lembrou da camisola que vira numa loja. Em frente da tabacaria que costuma freqüentar. Quem sabe se lhe fizesse uma surpresa, num embrulho bem bonito, mandaria entregar com um cartão, chegou a rabiscar alguma coisa num papel, mas não era bom com as palavras, rimava sono com a incorrespondente palavra outono*, desistiu da compra quando a vendedora veio perguntar se desejava comprar alguma coisa para a sua esposa. Ele apressou-se em dizer que não tinha esposa no lugar de ‘não quero nada’. Depois ficou envergonhado por dizer aquilo. Afastou-se da vitrine sem olhar para trás. Certo de que a vendedora o achara estranho e comentaria minutos depois com sua colega sobre ele. Deixou cair o pacote com o fumo quando meteu a mão no bolso para apanhar a chave da porta. Entrou, acendeu as luzes, viu que horas eram, tarde, não tinha tempo para uma ducha rápida, foi até a janela, observou o prédio em frente, lá estava ela. Imagem: Edward Hopper, The Night Window, 1928.

* "Não rimarei a palavra sono/ com a incorrespondeente palavra outono./ Rimarei com a palavra carne/ ou qualquer outra, que todas me convém. (...) - do poema de Carlos Drummond de Andrade, "Consideração do Poema".


“Amarelo fica muito bem em você” – assim como “A Vida em três ou quatro linhas”, "Em Alguma Daquelas Janelas", "No que estará pensando", "O Velho Cinema" e "Às quatro da manhã", publicados anteriormente aqui neste blogue – faz parte de uma série de pequenos textos que escrevi inspirados nas telas do pintor norte-americano Edward Hopper cuja influência sobre este blogue não se limita a estes textos mas espalha-se pelos demais com maior ou menor intensidade e também pelas fotos que ilustram muitos deles.

domingo, 13 de julho de 2008

chegará o dia

Chegará o dia em que eu vou decepcioná-la. Não serei tão forte como você espera, nem parecerá que eu tenho aquela experiência toda que eu declaro, talvez tenha inventado os melhores anos da minha vida. Seu corpo então escapará dos meus braços e você aprenderá que só se caminha com as próprias pernas. Não sei como fará mas terá de apagar todos os vestígios de que me ama da sua pele e da sua voz. Eu telefonarei e você deixará tocar. É o que eu espero que você faça, foi por isso que disquei seu número, foi por isso que insisti em ‘chamar’ mesmo sabendo que você só precisava esticar o braço para atender, sei onde fica o telefone, ao lado da sua cama, conheço cada detalhe do seu quarto, posso descrevê-lo para você, sei que a parede é mais branca atrás do armário, sei onde acumula mais poeira, conheço cada rangido da sua cama, mas isto a esta hora os vizinhos também já devem saber, conheço cada centímetro de você, sei quando parece que uma serpente sobe por entre suas pernas, sei quando você não consegue disfarçar. Sei. O que posso fazer? Negar? Não dá. Chegará o dia em que não adiantará mais nada saber tudo isso sobre você. Nos encontraremos na sessão de laticínios e eu estranharei aquela ricota no seu carrinho.

Não é o futuro, isso já aconteceu, comigo, com você, com quem acabou de ler. É que a vida é disso que se trata e é justamente nisso que eu quero me concentrar, não nos grandes feitos, nos heróis que não há, mas ‘em que você está pensando quando está do outro lado da festa e me observa conversando, fazendo gestos, inflamado, me admirando’. Será que compreende que eu também deixo as coisas caírem, que às vezes não sei onde coloquei e preciso procurar, que erro como todo mundo, que posso ser justo mas também posso pensar só em mim mesmo, que quando você deita a cabeça no meu peito e começa a contar sobre o seu dia que metade do que me diz eu não vou guardar, que é porque você é linda que eu deixo o que estou fazendo só para lhe beijar. Será que entende que a maior parte do tempo já é ‘amor’ e não somente naqueles ‘momentos’. Chegará o dia em que não concordará comigo como faz agora com um sorriso.
Foto: Ricardo Pereira/modelo: Gi.

domingo, 6 de julho de 2008

segredo estridente

Eu discordo, disse a ela, a vida não é como dizem tão curta que precisemos fazer tudo com pressa como se esta fosse a última noite e ainda que fosse: como saber? – e ainda que soubéssemos porque rasgaria sua roupa se posso tirá-las para você porque eu quero você como se ainda não a conhecesse, como se ainda me surpreendesse a tatuagem que estou cansado de ver, quero você como se da primeira vez se tratasse e não da última, e não do fim, apesar de que o fim é uma fantasma que sempre ronda, devo lembrá-la, mas eu posso deixar a luz acesa se isto fizer com que você se sinta melhor e o fantasma vai embora, ou então volta outra hora. Posso escrever sobre você para que suas amigas sintam inveja de como eu a adoro, de como eu rastejo e posso escrever sobre você apenas para que eu saiba, apenas para que eu ‘sorria’ da nossa história e posso escrever para que nem você saiba que é de você que eu falo e você pode ser todas, nenhuma em especial, e ainda assim ser especial sem que o saiba porque se torna.

Estou escrevendo um livro. Já tenho o título e uma idéia para a capa, só não sei como termina, não sei se quero terminar, escrevo sobre a vida, mas talvez a vida seja algo que possa não interessar, por isso esses pequenos fragmentos, essas idéias que dou para você pensar, só o gostinho de como será, se é que será, mas se é sobre a vida não importa o que virá, importa o que se vive, escrever apenas corrige a vida, escrever traz você para perto não importa onde está, acho até que pode me ouvir se eu sussurrar, porque eu conheço o que arrepia sua nuca e você sabe como isso a deixa maluca.

Mas e se você não for um segredo que eu quero guardar? Mas for um nome que eu quero dizer alto. Você me diz que tem uma vida em que eu não posso entrar, apesar de que nela eu já entro quando você se pega distraída com algo que a faz se lembrar e alguém precisa perguntar onde você está com a cabeça que parece tão fora do ar. Você sabe onde está, mas não diz, acha melhor disfarçar. Não é porque alguém chegou antes de mim que eu não posso fazer você se questionar se fez a escolha certa, querer saber onde eu estava há alguns anos atrás que não nos víamos nas mesmas festas. Sabe que a porta estar aberta hoje não significa que amanhã ela também vai estar. O fim é um fantasma que sempre ronda, não custa lembrar.
Foto: Ricardo Pereira/modelo: Bruna S.