sexta-feira, 29 de junho de 2007

o seu fantasma

Não quero que amanheça. Não preciso do mundo lá de fora. Eu queria que fosse sempre noite e o seu fantasma para me fazer companhia. Ninguém até hoje amou um segundo sequer por isto não faz a mínima idéia do que eu estou sentindo. Dispenso piedade, cristianismo. Em matéria de amor estão todos boiando, eu sei a verdade, eu sei o quanto rasga, estraçalha, arrebenta e não pede desculpa: isto aqui no meu peito nem de coração mais pode ser chamado. Também sei o quanto esta porra vicia, eu falo, faço discurso, escrevo pro jornal e o escambau, mas sei que daqui a pouco tô eu de novo na praça rodando bolsinha – na luta pela minha trouxinha de poesia. Deus, como eu me vendo barato.

Eu penso nas muitas canções de amor que fizemos aqui nesta mesma cama. Foram noites de ensaio e improviso. Nada mais importava no universo do que o próximo verso que deixaria tudo ainda mais perfeito. Como se dependesse de nós a harmonia do cosmos. Agora eu sinto como se um meteoro do tamanho da lua se aproximasse cada vez mais do nosso planeta – tenho quase certeza disso.

Não quero caminhar pela rua incompleto. Preciso que alguém me chame, que saiba o meu nome, meu nome secreto. O mais difícil é voltar à vida, ressuscitar depois de três dias. Estou que é só resto. Procuro uma camisa limpa e uma direção.
Foto: Ricardo Pereira/modelo: Bruna S.

quarta-feira, 27 de junho de 2007

não é o amor que interessa

Não é o amor que interessa a B., mas antes a habilidade do outro corpo para o prazer, alguém sem preconceitos, que abocanhe, que insulte, que grite muito, que goste de dar e receber ordens. Esse outro corpo adormeceu no lado mais fresco da cama, onde o lençol ainda cobre o colchão. As veias e os músculos de B. continuam a pulsar, os dedos dos pés libertaram uma descarga que começou no sexo e que se alastrou para o estômago e depois por todo sistema nervoso. A carne cresceu e voltou a encolher ao redor dos ossos, os pulmões sossegam, há um risco de sangue no lábio inferior que B. limpa com a língua. A roupa e os sapatos são apanhados do chão e B. veste-se na cozinha, diminuindo a velocidade dos movimentos para lhe reduzir o som. Limpa o gargalo com a palma da mão, bebe água pela garrafa e certifica-se que recolheu todos os seus vestígios pessoais no apartamento. Sempre que B. encontra um corpo virtuoso guarda um endereço, um número de telefone, qualquer referência. Mas quando os corpos – como nesta noite – apenas servem de alimento, recusa repeti-los.

Em casa, B. senta-se na cama, diante do espelho, e masturba-se, fechando os olhos depois para recorrer às imagens selecionadas em outras noites, várias pessoas numa cama, uma praça pública durante a noite, ou uma varanda e vizinhos que espreitam, às escondidas, na janela do edifício do outro lado da rua. Antes de adormecer, abre um livro erótico, escolhe um capítulo e começa a se tocar, procurando sintonizar o orgasmo com o orgasmo da protagonista. De manhã, na banheira, com a água escorrendo na pele, atravessando o sexo, B. já não sente repulsa do corpo que conheceu na noite anterior, e começa uma vez mais, a escolher imagens, gestos, palmadas, frases, que utiliza quando se manipula à procura de mais prazer.

Na rua, no emprego, num supermercado, B. persegue pessoas com quem quer se deitar, ou apenas ficar em pé, contra a parede, no banheiro de algum restaurante. É um exercício quase sem interrupções. E mesmo o trabalho serve apenas para conseguir dinheiro e poder, é um instrumento de conquista, uma outra maneira de conhecer pessoas para consumir. A noite, entra num bar onde casais procuram parceiros, e abusa do álcool para eliminar o desconforto de se aproximar de estranhos. Os diálogos perdem a importância, e os jogos verbais de sedução substituem-se por um pormenor, às vezes uns óculos, as mãos, os sapatos, objetos, ou apenas linhas de carne que aparecem entre a roupa. A exigência de corpos sem imperfeições, começa a desaparecer. Depois de tantas experiências, sabores e lugares. Importa encontrar sempre algo de inédito, porque a repetição destrói a intensidade do prazer.

No carro de um casal, B. despe a mulher e aprecia a atenção do homem que aproveita os semáforos vermelhos para observar o espetáculo do sexo no banco traseiro. Quando tudo termina, ainda antes de chegarem ao motel, B. salta do carro e corre pelo passeio sem se justificar. Continua a correr até entrar num táxi, fechar a porta e sentir as marcas da boca e das mãos da mulher nas próprias pernas, no rosto, pescoço, espalhando-se no ventre e nos mamilos. Esta é a fuga que executa sempre após a violência, o descontrole, a luta, o triunfo e o temporário estado de graça. Observando o taxista no retrovisor, B. puxa uma meia pela superfície da perna até alcançar a carne da coxa. Prende o cabelo e empurra os lábios contra o batom. Não é amor que procura, uma casa, uma família, alguém que a espere ao anoitecer. Os pedaços dos outros chegam para aliviar a solidão. E enquanto descansa os pés do salto, B. analisa as pessoas que caminham no passeio, escolhe alguém que consiga cansá-la mas que depois a deixe dormir sem se aproximar do seu corpo durante o sono.

(B. realmente existe, a inicial do seu nome nem é esta, achei que B. seria mais obscena que a sua própria, ela aprovou. O conto acima foi uma homenagem que lhe fiz. Como a conheci? Uma noite me puxou para um canto e foi clara comigo – “não estou a fim de você”, disse ela, “estou a fim de dormir com você”) Foto: Ricardo Pereira/ modelo: Renata Punk

domingo, 24 de junho de 2007

this is not a love song

Para Raquel Drummond

Eu queria que você não desse tanta importância. Nem tomasse como algo pessoal. Fui com você como fui com todas. Ninguém teve a mais. Parece que não mas tenho princípios. Esta é a minha ética por mais cabeluda que ela lhe possa parecer. Não se culpe que eu não lhe culpo. Nem me culpe que eu não enganei você um minuto sequer. Fui sempre bastante sincero, você sentiu isto cada noite que passou comigo. Sei que quer passar mais algumas, eu também, a gente dá um jeito, mas você leva a sua vida e eu a minha. Eu sempre estarei aqui para você. Cabe a você vir ou não. Eu te amo assim do meu jeito. Acontece que há muito que elas me provocam. Bem antes de você descobrir que eu existia. Não precisa brigar comigo porque eu não sou perfeito. Eu sei que daqui há algum tempo eu nem estarei na sua lista de telefones e minha voz não a fará mais tremer de paixão. Eu sei como funciona estas coisas. Sei porque já cortei meus pulsos infinitas vezes. Eu queria que você saísse por aquela porta perfeita como entrou. Eu não te tratei como mais uma e você se apaixonou. Leu meus livros, trechos do meu romance, quis fazer parte dele, escrevi algumas linhas sobre você, revelarei só mais tarde quando tudo for história e você vai sorrir numa tarde da sua vida numa livraria em pé como se aquelas palavras fossem um sussurro no seu ouvido que você procura ao redor para saber se mais alguém escutou. Eu deixo você ir embora mas você insiste em ficar. Tudo bem, esteja à vontade, a casa continua sendo sua, mas na minha cama tem mais lugar: quero aproveitar o espaço. Não sei por quanto tempo mais vou estar inteiro. Tenho ficado velho ganhando dinheiro. Antes eu era mais livre, não tinha quase para nada, mas dava um jeito. Agora que eu tenho para gastar as coisas estão mudando de sabor, preciso aproveitar o que resta de doce naquilo que sobrou. Claro que eu quero mais um. Quantos você quiser me dar. Não sei recusar. Acho que se soubesse tudo se resolveria mais facilmente mas eu não sei, minha carne é óbvio que é fraca, mas nem a mais e nem a menos do que às dos outros mortais. Você decide se participa ou se finge que não escuta. Não dá para abaixar o som. A vizinhança que se dane e o que ela quiser pensar. Não pense que não é difícil para mim admitir o quanto cedo fácil às tentações. O quanto sou também pequeno, vulgar, humano. Só não quero lhe enganar. Muito menos me trair. Já aconteceu e você sabe. Não tem porque disfarçar. Não, não era uma prima de longe que veio me visitar. Foi você quem quis entender assim. Lembra quando você era a prima de longe que vinha me visitar? Não fazia esta cara que faz agora. Dizia que na calada da noite era mais gostoso mesmo que isto significasse à uma da tarde. Antes de começarmos sabia bem em que estava se metendo. O que eu prometi eu cumpri. Suas amigas lhe falaram de mim. Com quantas delas eu já havia estado? Duas, três. Duvido que elas só me tenham feito elogios. Foto: Ricardo Pereira/ modelo: Cátia Elétrica

quinta-feira, 21 de junho de 2007

às quatro da manhã

Eu era uma ilha qualquer até você aparecer
Mas eu não sou ninguém
Então fomos feitos um para o outro

A noite estava linda. O nosso conceito do que faz uma noite linda é bem particular. Não se atrevam a pensar como nós, vivam suas vidas e nos deixem em paz. Ela me contava da sua infância, eu não queria ouvir aquilo, mas gostei do timbre da sua voz, disse que ela podia ser uma cantora e ela riu gostoso – seu trabalho é atender telefones e dar desculpas em nome do seu chefe para garotas de nome Shirley numa empresa grande e fria, o salário é razoável, paga o aluguel e o que sobra ela gasta em vestidos e penteados. E você o que faz?, ela quis saber. Eu minto que sou um escritor. Mas a esta hora da noite eu sou só um jornalista mesmo – meu trabalho é dizer que se as coisas não vão bem a culpa é tôda dos adversários políticos do dono do meu jornal e, claro, flertar com as estagiárias numa empresa grande e fria, o salário é razoável, paga o aluguel e o que sobra eu aposto nos cavalos.

Depois ela me contou das viagens que gostaria de fazer, do filme que vira naquela semana e de um ex-namorado ciumento. Toda aquela ladainha começou a me dar sono, o relógio da lanchonete marcava quatro da manhã, eu sabia que se a convidasse para ir até o meu apartamento ela aceitaria, acho que ela mesmo teria sugerido aquilo se não fosse seu medo de parecer uma garota barata. Ora, benzinho, as quatro da manhã todas as garotas são baratas e se não têm coragem de dizer que querem subir para o apartamento de um cara estão na vida errada.

Eu joguei algumas moedas sobre o balcão e o sujeito atrás dele as apanhou rapidinho como se não visse a hora de que fossemos embora. Ela me seguiu como se eu fosse uma espécie de guia pela madrugada. Depois de algumas ruas grudou no meu braço esquerdo, a cabeça esticou sobre o meu ombro e o cheiro dos seus cabelos invadiu-me as narinas como um narcótico dos bons. Corri minha mão pelas suas costas até agarrar sua cintura e puxa-la contra mim. Ela deixou escapar um pequeno suspiro e eu tentei me lembrar de alguma melodia que pudesse assobiar naquele momento. Não teremos filhos, nem seremos felizes, mas isto na vida às quatro da manhã é o que menos importa.
image: Edward Hopper - Nighthawks(1942)

quarta-feira, 20 de junho de 2007

daqui a pouco será outra

Daqui a pouco será outra. Eu serei outro. Novos corpos virão se juntar aos nossos. A cama será pequena. Uma vida será pouca. Nem sempre será amor quando muito a esperança de que aconteça. Acreditamos e iludimos. Deixamos uma história às vezes nem isto: dei-lhe um nome falso, você um telefone que não existe. Depois tudo volta a ser como antes porque homens e mulheres se conhecem a todo instante.

Vem você me dizer que o tempo é curto. Precisa correr para a sua faculdade. Eu lhe dou uma carona – mais como quem não quer sair da cama. Tudo bem, ela diz, mas só mais alguns minutinhos. E lá se vai mais meia-hora. É este seu cheiro que não me deixa pensar direito. Daqui a pouco tudo volta a ser sério. Eu preciso escrever sobre coisas importantes: a violência, o desemprego, a baixa do dólar. Se eu pudesse desistia de tudo e lhe fazia uma elegia obscena com a ponta dos dedos pelo seu corpo – duraria semanas. Você diz isto para todas – pior que ela tem razão.

De volta à realidade tudo conspira contra nós. Eu preciso pagar minhas contas, você estudar direito. Não vamos deixar que a mágica acabe – ela me sussurra no ouvido e eu até acredito que seja verdade. Pode ser que por mais que eu me esforce isto nem dê um capítulo do livro. O nome dela suma das minhas anotações ou algo do tipo. É disso que é feito o meu romance: da tentativa de tudo guardar. Por isso não termino nunca nem acho que foi feito para terminar. Escrever é como me lembro – não quero deixar de me lembrar.
Foto: Ricardo Pereira/ modelo: Dana Dinha

segunda-feira, 18 de junho de 2007

era para ser a última noite da Terra

Não, amanhã não será perfeito, amanhã será uma droga e esse gosto amargo na boca. Hoje era para ser a última noite da Terra, quando tudo é permitido, foi o que eu sonhei no caminho do trabalho até em casa e pensei em todas as mulheres que é preciso conhecer, em todos os vinhos que nos aguardam em tonéis, em todas as músicas que existem para tocar, em todos os hotéis baratos que ficam no caminho do trabalho até em casa.

Ela me ligou dizendo que fugiria da escola, estava lendo umas coisas incríveis, queria ser atriz, queria ser louca, queria subir pelas paredes, queria aprender a fumar, queria ser domadora de leões, eu ria, ria dela e não podia parar. Era tudo sério, ela me explicava como faria com uma felicidade empolgante, fazia gestos, escrevia no ar, dançava, subia no sofá, ela não se continha da vontade de falar. Tudo era urgente, fazer amor era urgente, questionar Deus era urgente, escrever um romance era urgente – ah como eu queria estar ainda dentro dela no último instante.

A gente sabia que não tinha mais tempo para nada, tudo seria inútil, tudo desmoronaria em questão de segundos, os impérios, as leis, a moral judaíco-cristã, monumentos, estátuas de bronze, símbolos de heroísmo, arquiteturas sofisticadas, tudo no caminho do trabalho até em casa.
Foto: Ricardo Pereira/modelo: Simone Klaus

sábado, 16 de junho de 2007

o nome da mulher na minha cama

Qual será o nome da mulher na minha cama? Será que ela o disse? Eu sei que perguntei mas estava entretido demais com minha mão descendo pelas suas costas para prestar atenção em algo tão formal. O problema é que agora não me lembro se disse mais do que deveria. Quais promessas terá ouvido da minha boca? Segui o plano do começo ao fim ou adaptei o velho esquema à situação? Lembro da música, algo bobo, ana carolina para ser mais exato. Ela veio para o meu lado. Estava com um amigo. Mais dela do que meu. Talvez de nenhum dos dois. Sei que nos apresentou. Tudo bem? Tudo bem. Disse que era bonita. Era mesmo. Não estava brincando. Ela riu. Achou que eu era “outro”. Outro desses caras baratos que circulam pela noite em busca do que fazer. Nada disso, my dear, eu tenho princípios, eu li Stendhal, eu sei falar vamos fazer amor em mais de dez línguas, você nem sonhava em ir além da esquina quando eu já voltava da estrada. Não me confunda. Eu sei que estou embriagado, corro o risco de falar muita bobagem mas pudera esta festa é um saco, esta gente toda é um saco, eu nem sei como vim parar aqui, você sabe dirigir?, quer ouvir uns discos lá em casa?, vamos fazer amor em mais de dez línguas?

E ela que não acorda. É dez da manhã. Chacoalho ela ou deixo que ela fique morando aqui para sempre? Tem umas pernas lindas. Dá vontade de escrever uma canção de amor olhando daqui de onde estou. Será que vim ao mundo para fazer alguma outra coisa além disso? Não sei, não sei mesmo, e aquela encheção de saco toda chamada “tese de doutorado”? Será que sou eu querendo aparecer? Não vou mudar o mundo mesmo com nada do que eu escrever. De que me serve mais um título? Tenho diploma de tudo o que é coisa e não me sinto nenhuma delas. Eu só quero conversar sobre livros e me apaixonar incansavelmente. É pedir demais. Não incomodo ninguém. Depois das dez até abaixo o volume. Eu sou um santo. O diabo nunca sugeriu comprar minha alma, eu também nunca toquei no assunto com ele, deixo que ele entre no corpo das garotas comigo e faça a noite tremer. Este último terremoto de que falaram tanto começou assim. Quando a garota sai do transe está purificada, durante alguns minutos não faz a mínima idéia de quem é nem de onde está, olha para você como se fosse Alice que acabou de acordar no País das Maravilhas.

Fizemos a maior bagunça; Tem roupa espalhada por tudo o que é canto da casa. Não encontro meu sapato. Na calcinha dela, atirada fora da cama, está escrito “for you” na parte detrás. Não tinha visto antes. Faço um “este mundo está perdido” com a cabeça. Puxa que mulher mais baixa. Vai para a cama com o primeiro homem que lhe diz que sabe falar vamos fazer amor em mais de dez línguas. Como é que eu pude “ficar” com uma mulher assim? Tudo bem que ela é demais. Mas isto não é desculpa. Acho que a gente nem se entendeu, isto é, nem conversamos direito, tirando tapas no traseiro eu nem sei do que ela gosta.

Pelo menos não tive que convidar para jantar, levar ao cinema, fazer algum comentário elogioso sobre como ela fica ótima naquele vestido ou dizer como os olhos dela são lindos. Falando nisso qual é a cor dos olhos dela? Merda, vou ter de dizer algo quando ela acordar, nada estúpido que se refira a noite passada, ela dormiu comigo e só, vai embora como se nada tivesse acontecido, melhor assim, a gente troca os telefones como se fosse ligar um para o outro. Eu desço com ela até o carro, comento algo sobre o clima, ela vai me oferecer os lábios para um beijo, eu a beijo sem me demorar muito, ela sorri, pisa na embreagem, engata primeira e pisa no acelerador. Um último aceno e nunca mais nos veremos, caso cruzemos de novo pela noite fingimos que tudo é uma grande novidade e porque foi bom podemos fazer tudo de novo mas seremos cuidados, ela pode estar com alguém, eu posso estar com alguém, é uma das claúsulas do contrato que implicitamente assinamos, está lá nas letras pequenas. Mas agora esquece, você não pode se atrasar porque tem milhões de coisas para fazer e depois é noite e começa tudo de novo. Outra garota sem nome. Mas hoje para variar um pouco vou procurar alguma que tenha peitos grandes. Enormes de preferência.
Foto: Ricardo Pereira/modelo: Érica

sexta-feira, 15 de junho de 2007

da minha solidão até a sua cama

Enquanto mil demônios
circulam pela cidade,
eu sinto fome
de quem amo
mas não chamo pelo seu nome,
calculo quantos passos serão necessários
da minha solidão até a sua cama
e penetro sorrateiro
no pensamento dela.
Ela escuta minha fome
cada vez mais próxima
e se esconde
embaixo das cobertas
mas me deixa a porta entreaberta.

Enquanto mil demônios
não sossegam nenhum minuto
pela cidade,
eu entro
pela porta entreaberta
e me deito
ao seu lado
como um cúmplice
(enquanto mil demônios nos invadem).


poema e foto: Ricardo Pereira
modelo: Érica

quarta-feira, 13 de junho de 2007

"Coloque-me música"

“Coloque-me música” – foram exatamente estas as palavras dela. Adoro mulheres que existem como se estivessem num filme. A realidade só serve para pagarmos nossas contas. Eu já escrevi certa vez que “a literatura é o meu disfarce”. Tirando isto, não passo de um jornalista-coitado obrigado a escrever gentilezas.

A gente quer mais é escapar para um mundo preto e branco como minhas fotografias de você – e de preferência com uma boa trilha-sonora de fundo: algo dilacerante como chet baker já nas últimas. Então você me conta sobre o seu dia como se não houvesse nele trânsito, poluição, gente mal-educada e hora para tudo – mas somente o que você ouviu no rádio e pensou que dançávamos.

Gosto deste submundo onde a gente se permite tudo: brinca que é amor e abusa de nomes falsos. A cidade lá fora não nos pertence – nela estamos fingindo que é vida. A revolução é tramada aqui – você aprende a usar suas armas enquanto eu redijo manifestos. Você é uma agente secreta especializada em fazer amor e eu cada vez mais perito em decifrar seus códigos.

foto: Ricardo Pereira/modelo: Cátia Elétrica

terça-feira, 12 de junho de 2007

poema e foto

você estava num canto da sala
entretida com o resto da festa
mas se despia para mim
num quarto vago
que a memória me alugou


poema e foto: Ricardo Pereira
modelo: Maria Quel

domingo, 10 de junho de 2007

pode brincar comigo que eu lhe alcanço

Para onde você está me levando? Tenho o direito de perguntar. Não, não é medo do que me espera. Há muito perdi qualquer ilusão de que amar seja seguro. Eu sou do tempo em que amor para ser amor necessitava algo de violento por isto carrego tantas cicatrizes pelos velhos tempos. Mas, você não estava lá, não pode saber de nada, você é jovem demais para certas idéias loucas que eu tenho na cabeça.

Eu já estive aqui antes mas não era você, estou achando tudo meio familiar – as dúvidas, a apreensão, mesmo esta ansiedade natural de quando se cava fundo um mistério. Eu disse o mistério que é você? Primeiro conduz minha mão até onde estão guardados os seus melhores segredos, depois quando sente que eu já lhe descrevo perfeitamente bem, inventa-se de novo: a pele, a cor dos cabelos, a voz e a paixão.

Sei que não deveria perder mais tempo com estas histórias. Preciso me concentrar numa única idéia, seguir com ela até o fim, mas qualquer novo perfume é suficiente para me despertar o aventureiro e quando digo um nome no poema posso estar dizendo outros tantos que ouvi aqui e ali. Enquanto eu quiser lhe serei leve, pode brincar comigo que eu lhe alcanço. Um dia me canso, você também se cansa de mim, não serei mais capaz de lhe traduzir as “novidades”, precisará de outro poeta e eu de outra que não se conheça tão bem para seduzir.

foto: Ricardo Pereira/modelo: Cátia Elétrica

sexta-feira, 8 de junho de 2007

meu nome no corpo dela

Ela disse que vinha. Eu resolvi esperar. Pode ser a qualquer hora: cedo, de dia, a noite, de madrugada. Deixo que ela decida. Sei que ela não vem só por festa, precisa mais é fugir um pouco de tudo, eu posso apagar as luzes e deixa-la dormir, vigiar seu sono, dizer que não se preocupe com nada enquanto estiver ali comigo, perdeu algo que não pode recuperar de volta, eu já estive na pele dela, não quero nunca mais estar – porque por mais que fujamos do assunto a dor permanece lá com a sua história inteira por detrás para nos contar.

Se ela quiser amor faremos, se ela quiser só conversar eu preparo um chá, comprei do sabor que ela gosta. Posso ser amante, posso ser amigo, posso ser o que ela precisar, não importa o nome que me dê nas horas em que fica comigo, não cobro dela nenhum tipo de resposta, tudo está por combinar. Vou ficar por perto esperando o momento certo que sei não é já – mas quando ela quiser se apaixonar eu digo que posso ser de verdade na vida dela, que basta ela acreditar.

No mundo dela eu sou um estranho, no meu ela talvez cause mais desordem. Faz tempo que não sigo as regras, nem me lembro direito como eram. Será que ainda tenho jeito? Tudo o que ela leva de mim é uma cumplicidade da qual ela nem se imaginava capaz – precisei de poucos minutos para despi-la, vi sua nudez mais do que qualquer outro homem antes de mim porque quando ela veio ela veio inteira. O que foi bom agora a assusta. Meu nome no corpo dela é dito baixinho. Ela me pede que guardemos segredo. Na frente das outras pessoas ela se faz de forte – não chora, dança e ri. Aqui comigo ela não se esconde assim.

foto: Ricardo Pereira/modelo: Cátia Elétrica

love story

para Mariana

Eu a vejo passando e se a alcanço não a seguro pelo braço nem a chamo antes que dobre a esquina. Você não vira a cabeça interessada nem diminui a marcha; não faz idéia do que eu sinto nem se preocupa em perguntar. Deita na minha cama porque tem sono e me abraça com força porque sente frio. Beijo sua boca porque assim você fica quieta e durmo contigo porque assim descanso um pouco a cabeça. Não me preocupo em saber seu sobrenome mas se mesmo assim você o diz: entra por um ouvido e sai pelo outro. Não posso fazê-la correr os mesmos riscos que eu por isto não abro o jogo. Você tem medo que eu a siga na rua por isto me pede um minuto de vantagem. Não consegue me incluir em seus planos por isto fuma um cigarro pensativa. Não quero saber do seu passado por isto não pergunto o significado do “f” na sua tatuagem.

Você me vê passando e se me alcança não sabe de onde me conhece nem pede desculpas quando descobre que não sou quem você imaginava que eu fosse. Não a acho nenhum pouco familiar e até desconfio das suas intenções; nem a convido para beber algo embora esteja me dando mole. Você não me sai da cabeça por pura curiosidade e se não consigo olha-la nos olhos é porque penso já ter sacado todo o truque. Você me convida para o seu apartamento porque quer que eu faça pequenos consertos. Você volta vestindo algo mais leve por causa da lua que está fazendo. Não sabe o quanto é bonita mas não sou eu quem vai dizer isto. Não pode me chamar de seu porque sabe que eu vou embora tão logo consiga o que desejo. Tenho medo que você conte a todo mundo o que sussurrei baixinho em seu ouvido. Não posso convida-la para sair porque não quero que ninguém a veja comigo por duas noites seguidas. Você rasga minha fotografia e me atira vasos de flores porque não consegue dizer que me ama...

... e assim vamos os dois passando pela vida um do outro, milhares de vezes, sem nenhum compromisso para mais tarde.

quinta-feira, 7 de junho de 2007

a mulher com quem me deito

A mulher com quem me deito
não é a mesma com quem acordo.
No meio da noite ela muda de suave
para selvagem
e me deixa no corpo sua fome,
seu grito, sua paixão
e depois quando o sol vem
e nos acalma
ela ainda me consome,
me rasga, me degusta
mas já não tem a mesma loucura
nem morde tão fundo
apenas passeia sua língua sobre minhas feridas
como se aprovasse meu tempero
mal sabe ela que do homem
com quem se deitou
não resta nem o cheiro.
foto: Ricardo Pereira/
modelo: Cátia Elétrica

terça-feira, 5 de junho de 2007

meu livro sobre você

Olha – a beleza é apenas isto. O resto – um poeta que venha e invente. Eu já me cansei de mais disfarces – prefiro descobrir o que é suave tocando. Eu não nasci com habilidades para um milhão de coisas mas me apaixonar é algo que eu faço bem. Ontem mesmo escrevi o nome de outra no meu peito – hoje eu rabisquei o seu por cima. Não acredite em quem diz que é para sempre – é melhor que seja para já, neste exato instante, agora! – pegou o espírito da coisa? Eu sei que sim, você é uma garota esperta, já vivemos isto antes.

Olha – é fácil de me convencer. Bastam pernas como as suas. E você pensando que precisava ler inteiro o livro que eu te dei. Era só um teste. Queria saber até onde você estava disposta a ir. Pelo menos adquiriu um pouco mais de cultura. E sei que foram horas agradáveis – Kundera é uma ótima pedida nesta idade. Vai me agradecer mais tarde quando for viver uma outra história que não a nossa. Desculpe, não devia ter dito isto. Comigo é assim, não tive intenção de ser cruel, mas tudo um dia chega ao fim – até este seu fôlego todo pra cima de mim que você chama de amor.

Olha – eu já sei porque vim ao mundo. Foi por pernas como as suas. Acha que é muito pouco? Pode ser. No mundo há os que nasceram para serem grandes e outros com bem menos heroísmo. Vai ver é aí que eu me encaixo. Meu livro sobre você não pretende ser um novo “Ulysses”. James Joyce para sempre será lido e discutido, eu só quero que você me beije e me ame mais algumas noites – isto e eu já estou em larga vantagem sobre o irlandês.

foto: Ricardo Pereira/modelo: Cátia Elétrica


os velhos tempos

Prefiro histórias curtas, dessas que se pode contar em pé, entre uma bandeja de canapés e outra. Você reune um grupo de amigos em torno de si, é possível que haja algum intruso, não tem problema, desde que todos falem a sua língua e sejam do mesmo planeta, algo, convenhamos, raro hoje em dia, uma vez que estamos acostumados a nos adaptar a tudo e a todos por conta de uma necessidade de afeto quase que criminosa.

Eu não sou de dar muitas pistas. Posso estar falando de alguém que você pensa que conhece mas de repente eu faço uma menção aos cabelos vermelhos dela e então você descobre que não estamos falando da mesma pessoa. Mais tarde os cabelos vermelhos dela podem voltar a ser castanhos não me importo, tudo se mistura, estamos ficando um pouco altos, daqui há pouco tudo vem à tona, segredos de estado, esqueletos no armário, nomes de guerra, culpas no cartório.

Deixo o melhor para o fim. Ou melhor não deixo. Deixo suspenso no ar. Aquilo fica poluindo a sua cabeça como uma pergunta contra a parede. Você quer que tudo se encaixe porque a vida é mais simples assim – uma busca de coerência, de lógica, sem que você consiga ver o absurdo nisto, o absurdo de todos os dias, o quão surreal é ter uma agenda que comprometa todo o seu tempo. Já não pode sumir com os amigos para uma noite de loucuras, já não pode dar seu verdadeiro nome à garota que lhe crava os dentes, já não pode entrar sorrateiro pela porta dos fundos como se fosse proibido viver a vida que a maioria não pode. Jogam toda a frustração deles sobre sua cabeça e nem sacudir a poeira você sacode. Em que tipo de funcionário padrão você se tornou? Vai lá, faz a roda girar e não me enche mais com este papo de saudade dos velhos tempos. Eu acho que você inventou os velhos tempos.

segunda-feira, 4 de junho de 2007

a política das musas

Elas vêm, vão, não são de ficar muito – apenas o tempo de um cigarro, outras vezes o suficiente para corrigir uma rota condenada ao naufrágio. Em princípio dizem coisas desconexas, não dão muitas pistas, te levam para um lado e para o outro. Cabe a você se deixar seduzir e embarcar no jogo delas, de outro jeito não funciona, não queira ter o controle, verá o quão é inútil. Depois elas vão embora e te deixam com a sensação de que teve todas as chances do mundo para desperdiça-las caprichosamente. Elas nunca serão obedientes e passivas, não é da natureza delas. E se você reparar bem descobrirá que elas só lhe dão ordens que você não se importa nenhum pouco em obedecer e isto porque elas te conhecem bem, sabem das suas preferências, já vinham rondando a sua toca há semanas, não foi você quem as atraiu, elas vieram com suas próprias pernas – e que pernas!

As musas são mesmo assim. Não explicam tudo o que gostaríamos de saber, deixam no ar, gostam de fazer suspense, são peritas em charminho, conhecem bem as palavras que embriagam e as sussurram em seu ouvido como se fossem segredos nunca antes revelados com os quais precisam ter o máximo de cuidado. Eu me sento diante da máquina e as idéias fluem, estavam em mim só que adormecidas, esperavam o momento de ganharem o mundo – enquanto isso às minhas costas elas observam entre comovidas e excitadas como se não fossem elas as grandes responsáveis pelas palavras que brotam do papel. Acham que são somente o alvo delas. Ora, elas são o alvo, a mira, a flecha e até mesmo a velocidade do vento que lhe permitiu ser tão certeira.

Não é você quem escolhe quando baterão à sua porta pedindo para entrar. Nunca batem na porta, elas simplesmente entram, sem pedir nenhuma licença. Quando você se dá conta, uma delas já está em sua cama, como se sempre estivesse estado ali, há noites vocês fazem amor, o tempo não faz o menor sentido, seja uma odisséia seja um piscar de olhos, nunca se percebe sua eternidade sua fugacidade. Li numa enciclopédia que são nove. Clio, Euterpe, Talia, Melpômene, Terpsícore, Érato, Polímnia, Urânia e Calíope. Estranho, nunca me disseram que seus nomes eram realmente estes. Tínhamos mais o que fazer do que nos ater a meras formalidades. Ou os mitólogos inventaram ou azar o deles, nunca tiveram uma noite inspirada.

não precisamos mais do que uma cama

“Não precisamos mais do que uma cama” – lembro de que você me disse isto. A vida era outra naquele tempo. Você ainda não tinha vendido tela alguma e eu só queria um lugar para dormir. Nunca gostei muito da cidade lá fora tanto quanto você. Eu fui educado por outra escola. Tudo o que eu sabia da vida era uma bagunça de livros que ocupavam não mais do que cinco caixas de papelão que você fez uma careta quando me viu tirá-las do porta-mala: “A gente precisa romper com o nosso deus uma hora” – foi o seu comentário mais preocupada com o espaço que aquilo tudo ocuparia no seu ateliê do que com o meu deus.

Era poesia tudo o que discutíamos. Ficávamos dias inteiros entretidos com nossos cigarros. Aprendi sobre seus pintores preferidos, suas vidas boêmias, não me fascinavam tanto quanto Proust mas se vinha da sua boca eu aceitava – era por ser você dizendo que aquilo ganhava algum interesse para mim. Você nem desconfiava que era só “amor” da minha parte. Enquanto o restante dos móveis não chegava tínhamos espaço suficiente para todos os tipos de festa e fazíamos todas. Você quis porque quis me ensinar a dançar. Precisei apenas de três noites para pegar o jeito. Não convidávamos ninguém para nossas festas, naquele tempo éramos restritos demais como costumam ser os apaixonados mais violentos.

Foi como um tufão que tudo se foi de repente. Estranho que tenha sido assim. Depois de alguns meses eu já não a reconhecia mais. Eu chegava da universidade cansado e todo dia tinha mais livros para mim. Isto que dá querer fazer o mundo caber na sua tese. Nunca escondi de ninguém esta minha obsessão. Mas você dizia que eu fazia bem para a sua arte e exigia cada gota do meu sangue sem nem perguntar se eu ia precisar dela mais tarde. A verdade é que naquele tempo se você me pedisse eu tinha até morrido. Os românticos são doidos – começo assim o capítulo sobre você do meu romance. Mas não se preocupe, escolherei um nome bem bonito para você.

domingo, 3 de junho de 2007

esboço de uma teoria sobre o fogo

Em primeiro lugar demora a entender-se o fogo. Pela sensualidade com o qual se move é natural que nos sintamos atraídos. Uma das características da inocência é desconhecer os riscos. Se o tempo nos ensina alguma coisa é a sobreviver com o mínimo de cicatrizes possíveis. A bem da verdade nem sempre poderemos ser tão precavidos: há um instante em que o risco parece conter mel. Ficamos como que hipnotizados. Por isto conto aqui comigo umas três ou quatro cicatrizes, mas não é disto que se trata aqui: voltemos ao fogo.

Em segundo lugar é providencial que nos queimemos um pouco. A curiosidade faz com que estiquemos o dedo. Os mais sensatos retiram-no rápido tão logo percebem o que aquela dança sensual contém de serpente. Os mais poetas precisam de mais provas do seu veneno por mais que a dor estale dentro deles. Entende-se porque mais tarde recorrerão ao fogo quando palavras como “paixão” e “desejo” não forem mais tão elucidativas.

Em terceiro lugar é preciso que se goste do que se está fazendo. O fogo é uma arte e contempla-lo nos interessa desde criança. A noite quando nos protege do frio e afugenta os lobos ganha as feições de um rosto amigo. Entretanto seu humor pode variar de uma hora para a outra e o que antes nos dava segurança pode tornar-se uma grande ameaça. Por isto reconheçamos a necessidade de entender o fogo antes de expia-lo. Basta uma faísca para tudo vir a se perder. Da mesma forma que se explica o amor pode se explicar o fogo.

Por isto o melhor é que se não for necessário controla-lo que se assuma os riscos, deixe-o consumir-se até o fim, assim é que muitas brincadeiras ganham graça. Pense todo fósforo que se risca contra a caixa como o primeiro passo que se dá em uma terra firme depois de semanas no mar à procura das Índias. Por mais que se deseje pisar o chão ainda existe o desconhecido a nos fazer hesitar. A humanidade é fruto de uma necessária ousadia.

Diz-se do mistério – e muito bem – que o que nos atrai nele não é desvendá-lo mas imaginá-lo do que se trata. Li muitos livros que começaram assim, o mesmo posso dizer de algumas mulheres. Depois o que vem em forma de palavras ou de respostas nos dadas contra a parede quase sempre nos surpreende porque nem metade do que sonhamos. A vida é sempre mais interessante que o mito e por mais violenta que seja ainda dá uma boa briga. Se é necessário que hesitemos diante do fogo não podemos por conta disso nos curvarmos diante de sua dança. Por mais sensual que seja a dançarina de flamenco ela é de carne e osso e sente e sofre e chama. Aprendamos a "tocá-la". Metade da vida consiste disso. A outra metade que cada um escreva conforme lhe apraz.