quinta-feira, 19 de julho de 2007

a literatura é o meu disfarce*

para você vera

Eu entendo pouco de carros. Mal consigo dirigir um. Não me atraem nenhum pouco. Prefiro costas. Posso perder horas admirando as costas de uma mulher. Alguém me faz uma pergunta. Sobre carros. Estou distraído. Observo Vera de longe. Está de costas para mim. Entre amigas. Elas riem. Gostaria de saber do que. O sujeito insiste, pede minha opinião. Conheço o cara, de vista. Acho que é advogado. Não gosto de advogados. Namorei uma advogada. Fui apaixonado por uma advogada. Não gosto de advogados. Prefiro costas. Posso perder horas admirando as costas de uma advogada. Estamos um pouco longe da festa. A música ali quase não se ouve. Nem sei dizer porque me juntei aquele pequeno grupo. Homens falando de carros, pensei que discutiam política, quis defender o presidente, mas não era nada disso. Digo então o modelo do meu carro. Alguém faz um elogio. Balanço a cabeça positivamente como se concordasse com o que disse. Não sei se concordo. Não sei do que estão falando. De longe Vera me acenou. Depois comentou algo com as amigas. Deve contar mentiras maravilhosas a meu respeito. Não consigo tirar os olhos dela. Pareço um marido ciumento inspecionando a coitada. Quando o Jô tinha alguma graça havia uma personagem assim. Mas não é o caso, meu olhar a procura a todo instante porque meu desejo é sumir com ela daquele lugar. Podemos correr até minha casa, em cinco minutos estamos lá. Será que ela topa uma rapidinha em algum canto da casa? Estou a fim de cometer alguma loucura. Os caras que conversam ao meu lado sabem que estou com a cabeça longe. Nem escuto mais o que dizem. Pesco fragmentos das frases, tudo muito estúpido, nada sobre costas. Dou uma desculpa qualquer. Meu copo está vazio é a primeira que me vem a cabeça. Péssima, aliás, porque está cheio. Bebo de uma golada só. É uísque. É bom mas é forte, bebido assim, faz efeito instantâneo. Vou até o bar, me afasto. Os caras me observam depois me esquecem. Devem me achar maluco. Está com a Vera, alguém comenta. Então este é que é o escritor, comenta outro. Virei o escritor agora, talvez pelas crônicas bissextas no jornal da cidade. No caminho até o bar passo por Vera e suas amigas. Elas ficam em silêncio como se esperassem alguma palavra minha. Aponto o bar e não paro. Fico meditando sobre o que devo beber. Nada forte de preferência. Puxo uma coca do freezer. É cedo ainda. Onze e quinze. Vai demorar para ficarmos só Vera e eu, quero vê-la no meu presente. Penso em dar uma volta. Olhar as estrelas, estas coisas. Ficar na minha. Passo novamente por Vera e suas amigas. Ela me estende o copo. Derramo o líquido nele. Enquanto encho seu copo ela me observa bem nos olhos, há algo no ar. Uso de linguagem labial. Digo para que ninguém nos ouça, apenas movendo os lábios que quero fazer amor com ela. Acho que ela entendeu. Sorri entre constrangida e excitada. O copo está cheio. Deixo ela com suas amigas, a mensagem está dada. Vou na direção contrária do grupo em que me encontrava antes. Lá fora a noite me recebe. Paro na sacada. Um casal se beija a poucos metros de mim. Ao perceberem minha aproximação, interrompem o que estão fazendo. Fico sem jeito por tê-los atrapalhado, agem como se tivessem sido pegos no flagra, mas isto é um problema deles e de seus respectivos namorados, nada tenho com isso nem quero ter. Então eu desço até a piscina que está toda iluminada. Chuto uma bóia que se encontra numa das bordas da piscina e a acompanho com os olhos. Depois me interesso pela cidade lá embaixo. Suas luzes, seus sons que quase nem chegam até onde estamos. Procuro pela minha casa. Reconheço a torre da igreja que fica na mesma rua. Todos os domingos acordo com os cânticos da missa. Meu lugar não é lá. Sou um pecador. Eles também são, os que cantam, que estão lá na missa orando, comungando, o que quer que seja, apenas disfarçam perante Deus. Eu não disfarço. Eu assumo. "Deus é meu amigo/ Bebemos no mesmo copo". Conheço um poema que termina assim. Do Francisco Alvim. Outro me ocorre naquela hora. Do mesmo livro. Passatempo e outros poemas. "A polícia passa não vê/ o louco na praça/ o doido percebe e diz/ Deus é meu disfarce". Estava pensando nisto quando Vera me abraçou e deixei escapar o último verso "Deus é meu disfarce". "O que foi? Do que você está falando?", perguntou. Nada. E a beijei. Naquela hora não pareceu importante. Mas era disso que eu estava falando: a literatura é o meu disfarce. "Este pessoal não vai embora? Quando é que teremos a casa só para nós?", quis saber. "Calma, amor, são meus amigos, eu os convidei", defendeu-se ela. "E eu sou o que? Eu não sou seu amigo também?", insisti como uma criança que quer doce. Então ela começou a deslizar a mão pelo meu rosto como se fosse uma cega tateando para descobrir os detalhes dele. Com o indicador percorreu meus lábios, quando estava quase completando a volta, eu fiz como se quisesse morder seu dedo. "Você é muito mais, muito mais que isto, só deve me prometer uma coisa...", disse ela. "O que?", fiquei curioso. "Se quiser manter tudo bom como está não me faça ficar louca por você", era bastante ajuizado da parte dela. E foi se afastando, apontando o dedo para mim como se me acusasse de algo. Voltou para a festa. Eu fiquei ali pensativo por alguns segundos. Depois senti frio. Frio ou algo que ela disse. E se acontecer o contrário, hein Vera? Vou gritar daqui mesmo e faço: "e se acontecer o contrário e se eu ficar louco por você?" como não poderia deixar de estar.

*Gosto muito deste texto. Ele nem é recente. Já aconteceu há mais de um ano. Todos nós sabemos que Vera e eu não fomos muito longe em nossa história, muito por culpa minha reconheço, mas nem por isto ela deixou de ser uma mulher especial para mim. Amiga, apesar de tudo. Em todo o caso publico-o mais uma vez com autorização dela, claro, que leitora assídua sabe melhor do que ninguém o quanto ele é a minha “cara”.