domingo, 5 de outubro de 2008

meu café já está no fim

meus personagens têm dentes, eles mordem


Não, eu não sou ninguém, não tem que se lembrar de mim, de onde me conhece, você não me conhece, já devemos ter nos cruzado milhares de vezes pelas ruas, mas só isso, moramos na mesma cidade, mas toda cidade tem muitas outras cidades dentro de si, eu vivo em uma delas, você em outra, às vezes você nos visita, outras sou eu quem vem aqui, mas não me pergunte se eu venho sempre aqui, eu não vou responder do jeito que você quer ouvir. Eu tenho essa roupa e esse cabelo e tenho livros que nunca li, mas você não quer saber se eu respiro, se prefiro contra a parede do banheiro ou num hotel em que damos outra identidade, você não quer escrever sobre mim, isto pode levar horas, puxar uma cadeira, pedir algo, me ouvir. É mais fácil assim, você do outro lado do bar, imaginando se meu corpo é flexível, se falo obscenidades quando excitada, se meu pai se feriu na guerra e ganhou uma medalha. Meu café já está no fim, um gole e não tenho mais o que fazer aqui, eu queria aprender algumas gírias com aquela garçonete, como ser sexy mascando um chiclete, eu queria que um chicote estalasse em mim, mas não me pergunte no que eu estou pensando, ou vou começar a rir. Da última vez que olhei no relógio eram duas da manhã, daqui até meu prédio são três quarteirões, pode ser que eu seja assaltada no caminho, que eles tenham uma faca e que até me cortem se eu pedir, quem sabe se você desse uma de herói e aparecesse do nada, rasgasse sua roupa por mim, a gente faria ali mesmo, naquela viela pouco iluminada, a senhoria é uma velha mal amada que não deixa nenhum homem subir. Imagem: Edward Hooper, Automat, 1927.

“Meu café já está no fim" - assim como "Amarelo fica muito bem em você”, “A Vida em três ou quatro linhas”, "Em Alguma Daquelas Janelas", "No que estará pensando", "O Velho Cinema" e "Às quatro da manhã", publicados anteriormente aqui neste blogue – faz parte de uma série de pequenos textos que escrevi inspirados nas telas do pintor norte-americano Edward Hopper cuja influência sobre este blogue não se limita a estes textos mas espalha-se pelos demais com maior ou menor intensidade e também pelas fotos que ilustram muitos deles.