quarta-feira, 29 de outubro de 2008

a manhã

quem sou eu depois de você


Fui colocar um disco. Quando voltei ela estava em pé junto à janela, acendera um cigarro, observava a rua, o que acontecia, lá fora nada havia de mudado, pensava como tudo podia estar inundado, um tsunami ou algo assim enquanto dormíamos e aquele quarto e aquela música que escolhi e até mesmo aquele seu cigarro fizessem parte de uma cena, de um cenário, do qual ela não pudesse nem quisesse fugir. Ela era uma outra mulher, uma que eu acabara de conhecer e ela também. Fizemos amor e não fizemos, isto é, fizemos – mas fizemos aqui é mais um modo de dizer porque amor é algo que nunca saberemos se é o que estamos a fazer. Mas havíamos compartilhado ‘coisas’, bem maiores do que sexo, bem maiores do aquela cama desarrumada significava, queria dizer. Não é tanto pelo que ela me contou, mas pelo modo como me contou, não me refiro as palavras que usou mas como as disse, como pensou nelas, como me conheceu antes de dizer, o que ela me deu eu não tenho mais como devolver, ela sabe disso, a idéia lhe agrada. Outros a tocaram, falaram com ela, mexeram em seu cabelo mas era como se ela não se sentisse ali com eles, era como se ela tivesse assinado ‘no embalo’ um contrato que a obrigasse a agir assim como que para se sentir parte de algo maior do que ela, mais forte, algo que dizem ser a vida, a sua juventude, o tempo que se têm, era preciso viver a vida que é mais dos outros que dela para existir, para saber o que está rolando, para se ter onde ir, para escapar da própria vida que é o lugar onde ela se sente agora e onde por algumas horas estive: “... essa parte do meu corpo por exemplo nunca foi tocada, muitos homens passaram por aqui mas nunca a tocaram e você, o primeiro lugar em que me tocou foi justamente aqui...”, disse apontando onde seria. Existe a hora da festa e a hora de voltar para casa, o corpo também precisa descansar; nem sempre quem te convida para a festa volta contigo para a casa, espera o seu corpo descansar. Ela está ali como eu a desejo, queria pintar um quadro, tirar uma fotografia, mas prefiro guardar segredo de como a vejo, penso ‘é algo que nunca vão me roubar’: ela tem vinte-e-cinco anos, quatro meses, dezoito dias, seis horas, treze minutos, cinqüenta e quatro segundos de vida e daqui a um segundo não terá mais, além de mim ninguém tem como saber o que era. Escrever sobre isso não é nem dez porcento do que viver isso. Daqui a pouco o disco acaba, o cigarro apaga, a água começa a baixar. Foto: Alessandra Gi.