quarta-feira, 5 de novembro de 2008

luz natural

“... a falta de ar às vezes é um modo da gente lembrar que respira...”


Reconhece? Este é o meu corpo, aquele da noite passada, que você chamava de um nome índio, que você não acreditava que fosse possível, que eu mesmo não compreendo direito: apenas acato suas decisões, aceito o seu temperamento. Agora o seu papel nesta história é o de um cara se vestindo, personagem número dois deste teatro obsceno que interpretamos como podemos, não o culpo por ir embora, a gente se usa e se joga fora, mas não me olhe assim por cima como se tivesse me ensinado alguma coisa que eu ainda não sei, não combina com a sua expressão cansada de quem sabe que não tem mais nada para me oferecer, eu já fiz curvarem-se diante de mim muitos reis e você, convenhamos, não é rei de nada, só seguiu à risca o manual, a versão 2005 dele fui eu quem rabisquei, tão diferente da atual, naquela a gente se apaixonava, na de hoje entra e sai igual, não rola mais aquela coisa espiritual que sufocava – que sufocava mas era bom: a falta de ar às vezes é um modo da gente lembrar que respira. De que adianta gritar se ninguém vai escutar, você não veio até aqui para resolver todos os meus problemas, nem eu me interesso pelos seus, a vida não é linda? Preciso pagar uma conta, não tenho mais tempo para esta literatura barata que é o amor, esta invenção de cinco segundos, este perfume que me faz lembrar, estas taças abandonadas, este clichê do qual não se escapa, esta cara à tapa, esta luz natural – mas me dê licença que eu preciso atender o telefone, uma amiga quer saber sobre a noite de ontem, digo que me sinto viva, mas não faça essa cara, o que eu sinto está morto, enterrei enquanto você dormia, no quintal. E aproveitando que você está aí de pé me diz o que acha de um tribal aqui nas minhas costas? Foto dela: Aline Monique.