domingo, 27 de janeiro de 2008

de uma leveza insustentável

Já dormíamos juntos mas ainda não havíamos dado um nome àquilo. Como com muitas outras corria o risco de não sairmos disto. Nem discutir o assunto discutíamos. Ficava como estava. Estando bom para ambas as partes. O tempo se encarregaria do resto. Sua presença era delicada. Não me exigia nada além de uma cama. O melhor lugar para fazer. Nem sempre amor às vezes só bagunça. Fiz as contas de quantas noites ela tinha vindo no último mês. Ninguém mais do que ela. Encarei isto como um sinal.

Chamei ela para uma conversa. Era para ser séria mas rimos gostoso. Queria fazê-la entender o que se passava ali entre nós. Achei que talvez lhe faltasse experiência para perceber como fluem certos amores. Nada melhor do que a insustentável leveza do ser. Perguntei se ela tinha lido. Já ouvira falar. Fui até a estante e apanhei o exemplar mais novo que havia. Abri numa página e li aquele que é meu trecho preferido só para lhe dar o gostinho: “...nunca se pode saber aquilo que se deve querer, pois só se tem uma vida e não se pode nem compará-la com as vidas anteriores nem corrigi-la nas vidas posteriores. Seria melhor ficar com Tereza ou continuar sozinho? Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo “esboço” não é a palavra certa porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro. Tomas repete para si mesmo o provérbio alemão: einmal ist keinmal, uma vez não conta, uma vez é nunca. Não poder viver senão uma vida é como não viver nunca.” Ela teve sede e quis mais. Dei a ela o livro de presente como costumo fazer.

Hoje depois de alguns dias de leitura, demorou duas semanas para devorá-lo, estava em fim de semestre na faculdade, o que explica sua pequena demora, ela me deixou um recado na mesa do café, quando acordei dela restava só seu cheiro, escrito a mão numa folha de caderno. Nele sua impressão sobre o que lera como se de um trabalho de escola se tratasse – e que reproduzo abaixo sem alterar uma vírgula:

Vejo-me em Praga, olhando os tanques russos que passam e destroem as minhas ilusões. Ali sou Tereza e Tomas é o meu amor. A minha paixão, o meu ciúme, a minha obsessão. Sou frágil e, no entanto, disposta a tudo por ele. Sinto-lhe nos cabelos o cheiro de outras mulheres. Para Tomas, cada mulher tem uma particularidade que o atrai. É a descoberta do que faz cada mulher única que o motiva. A ligação entre sexo e amor é, para ele, um paradoxo. Eu sei e adoeço de medo, de angústia de o perder.

Agora estou na Suíça, exilada, mas não sou Tereza. Ela está com Tomas em Zurique e eu em Genebra. Chamo-me Sabina e Tomas é o meu amante. Já o era em Praga. Sou livre, tenho opiniões muito minhas, não quero compromissos. Mantenho uma relação mais ou menos estável com Franz, casado com Marie Claude. Mas Tomas é especial. Parecido comigo, talvez. Até aparecer Tereza. Tomas e aquele chapéu-coco que guardo... ingredientes de encontros de que Tereza suspeita, sem ter certezas. Carrego comigo este gosto por seguir em frente sempre leve, sem carregar pesos de relações nem remorsos. Uma insustentável leveza.

Mais tarde... mais tarde serei novamente Tereza regressada ao meu país, sozinha. E Tomas virá atrás de mim, suportando uma vida sem horizontes, sem poder exercer sequer a sua profissão de médico. Terminado o seu gosto pela leveza, afogado no mar da minha ternura.

E no fim estarei numa aldeia escondida da Checoslováquia onde pensarei ter encontrado a paz, a felicidade. Com Tomas e Karenine (que afinal era cadela). A felicidade acaba com o fim trágico de que Sabina toma conhecimento, lá na América para onde seguiu, carregando a sua leveza.

Pensando bem, eu queria ter sido Tereza, Sabina e Tomas. Todos os matizes do amor passam no relacionamento deste triângulo.


Ela passou no teste. Algo que se dá entre aquele romance e ela no qual participo distante. Porque não quero influencia-la mais do que um beijo, simples, leve, ao deixa-la em casa depois de mais um dia de festa. Porque ela precisa entender porque veio, porque está aqui comigo e precisa entender porque parte, porque um dia não estará mais. Precisa viver tudo aquilo que sente, tantas coisas que nem sabe, as idéias que tem hoje, as que terá mais tarde. Daqui há alguns anos se pegará folheando o mesmo livro e se lembrará de tudo o que dissemos e vivemos entendendo que nada que extraímos de suas páginas é mais bonito do que aquilo que sentimos porque nossa história é sempre melhor do que aquelas que nos contam, apenas que, na maioria das vezes, não nos apercebemos disso.
Foto: Ricardo Pereira/ modelo: maíra.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

outra noite

Ouço o som de passos. Espero a minha vez de ser resgatado. A cidade é enorme e milhões de coisas acontecem a todo instante, os jornais não ‘sabem’ nem a metade: o que se está apenas pensando, planejando, imaginando como será, é quase que tão mais vivo do que aquilo que se costuma ‘revelar’ – é o que alimenta os homens e os faz caminhar numa direção ou noutra. Há muitas pessoas que são exatamente como nós e outras completamente diferentes e todas estão sufocando, disfarçam como podem, mas estão sufocando. A felicidade é restrita. Chega-se muitas vezes na porta mas não se entra. É o que se conta sobre ela que vicia e não o gosto que ela tem que este ou nunca se sabe ou nunca se aprende suficientemente bem.

Sei que é ela. No telefone, sua voz era desespero e paixão. Eu disse que aqui era uma grande bagunça mas ela quis vir arrumar mesmo assim. Estou há horas precisando de um trago, não há uma ´saída’ em toda a casa, foi tudo embora com a última festa. Ela era apenas mais uma mulher honesta que eu despia com os olhos antes de saber como é que era. Penso no quanto se está sozinho e se quer apenas conversar, saber que o outro está ali e pode nos escutar. Beijo, sexo, amor estão incluídos na ‘promessa’ mas não esgotam toda a história, existem pequenas dimensões que se abrem quando começamos a nos importar realmente: estou pensando naquela música quando toca, em pessoas se lembrando de coisas, rindo por terem vivido situações semelhantes, andado pelas mesmas ruas e como é excitante descobrir que se guarda segredos iguais.

Três batidas leves na porta. Podia usar a campainha mas isto despertaria uma atenção desnecessária. Ela não devia estar aqui mas veio – eu não deveria abrir mas deixei a porta somente encostada. Três batidas leves funcionam quase que como um código secreto – sei quem você é e sei o que você quer, você sabe quem eu sou e que quero o mesmo. Outra noite para suportarmos bem, encontrar o que precisamos e esquecer como as conseguimos. Venha, faça parte, tudo tem o seu encanto, o seu fim. Existe num segundo e no seguinte não existe mais. E que diferença faz? Não é pelo que conquistamos que lutamos mas pelo que almejamos conseguir.
Foto: Nelson Luís Abrahão, Detetive, 2007.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

pelo menos inventaram deus

para ela sabe quem

Pelo menos inventaram Deus quando não se tinha mais o que fazer. Já imaginou, meu amor, não ter para onde correr? Eu gosto Dele assim geladinho, é como se eu nascesse de novo. Depois do fim do mundo então... é perfeito. Nem me lembro mais nem quero lembrar nem sei do que eu estava falando. Não vou estar em todos os jornais por tão pouco, o que tem se gente rolou escada abaixo, se perdeu um dente da frente, se todos os vizinhos estão comentando, se eu não chegar aos vinte-e-sete. O que existe para viver depois dos vinte-e-sete que eu não posso ‘dizer que é uma grande bobagem’ agora?

Todo mundo se acha grande coisa, mas eu não ligo, meu amor, pro que vão pensar, tenho sentado e conversado, me comportado quando acho que devo, falado alto se pisam no meu calo, ninguém me ensinou de outro jeito, nem a consciência tem alugado minha orelha com aquele seu papo de velho, sou paciente até demais com os imbecis, este talvez seja o meu único defeito, de resto sou uma pessoa perfeitamente normal, mas não estou pedindo que comecem uma nova religião por minha causa, já tem umas trocentas vendendo seu peixe por aí não adiantado de nada, pra que mais uma para tirar dinheiro dos pobres coitados? – eu por mim me estrepava e ia dormir depois, na manhã seguinte era só escovar os dentes e pronto. Devia ter uma empresa que apagasse todos os vestígios da sua vida depois como naquele filme “Eles Matam e Nós Limpamos” que peguei madrugada dessas na sessão coruja. Eu seria cliente preferencial, ganharia até brinde no natal, aqueles chaveirinhos toscos que você perde no mesmo dia que lhe dão.

Durante um tempo vão falar de mim pelas costas, blá blá blá, como se eu não estivesse acostumado a ser pego para cristo e como ele ressuscitar depois de três dias, não tem um santo nesse prédio, meu amor, e todo mundo achando que o lugar deles no céu ´tá garantido. Vão nessa. Eu pelo menos não acho que homossexualismo é doença nem que preto não pode casar com a minha filha, não olho por cima de ninguém porque ‘estudei’ nem fico puxando o saco do rei, eu sento no chão mesmo, faço amigos e digo o que estou pensando, beijo e trago para a minha cama, rodo porque o mundo está rodando, quem quiser me julgar que pinte os cabelos de verde primeiro.
Foto: Ricardo Pereira/ modelo: maria rita.

domingo, 13 de janeiro de 2008

depois dela

para ruth guidi, ela é uma

Você acredita realmente que sabe do que está falando quando diz Eu? Ora, você não faz nem idéia do quanto perde achando que se conhece bem. O que eu quero explicar é que somos capazes de milhares de coisas que nem sabemos e eu quis dizer isso tudo a você, quis dizer que você muda o mundo de um cara se quiser só pelo modo como prende o cigarro entre os dedos e olha por cima dos ombros fingindo que não sabe o que está fazendo quando pergunta "você tem fogo". Depois dela um homem aprende a separar as mulheres de verdade da idéia que ele faz do que seja uma mulher de verdade. Ela é uma.

Juro que eu não precisava estar chacoalhando você pelos ombros, dizendo acorda, parte pra cima, era algo que você já devia saber quando escolheu este vestido este salto. De onde vem toda esta inocência a respeito de si mesma? Com quem você andou conversando até agora? Na certa com esses caras que acham que tudo se resolve pagando-lhe um drinque, dando uma carona. Faça da sua vida o que quiser – quem sou eu para encaminhar ou desencaminhar alguém? – mas saiba que você pode palitar os dentes com estes tipos que nem se dão conta de que Deus pode ter beijado a boca deles esta noite.

Eu sei do que estou falando, sei porque me arrepia a pele, sei porque faz parte da profecia, sei porque sonhei como seria, as mesmas olheiras, os mesmos tentáculos, sei porque tudo já estava escrito, cada gota de suor e cada vez que você se despe de tão sagrado, sei porque você paira sobre o resto quando me lembro seu cheiro, como era, aquela noite. Depois de você todo o resto é uma espera. Foto: Gabriela Kobori/ modelo: Ruth Guidi.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

continua de onde paramos

Todas as explicações são boas, o prazer está em formula-las, o prazer está em ouvi-las, sua voz, a minha, conversamos. Sobre tudo e ficamos horas perdidos naquele canto do restaurante, uma garrafa de vinho a nos fazer companhia, já não bebemos, já não nos importa tanto, estamos em uma paris que não existe mais, aquela dos filmes preto e branco, somos personagens à revelia, idéias que fazemos um do outro quando estamos nos apaixonando.

Você me interessa porque tem dúvidas e eu lhe atraio porque ajudo a resolvê-las, não tenho o gabarito com as respostas, nem acho que as perguntas que tem se feito são as mais importantes, apenas respeito seu receio e sua ansiedade. O caminho é longo e você pelo menos já sabe onde está pisando, seu olhar mira o horizonte imaginando e eu que já estive lá e sei que não é daquela cor nada conto, nada revelo. Podia protegê-la do ‘seu’ destino mas isto seria impedi-la de ser você mesma, não quero você à minha imagem e semelhança, prefiro que só eu durma com um barulho desses.


Daqui há alguns anos meu poema para você será só um pedaço de papel, acontece com todo mundo, um dia a vida que você queria e que de certa forma aquele poema representava perde a força, desbota; é quando aquela vida que você aceita porque entendeu que não pode vencê-la toma conta em definitivo dos seus sonhos e passos. Enquanto isso não acontece, enquanto o mundo não lhe devora, deixe que eu ‘minta’ um pouco sobre o amor, depois eu também vou embora, quero ser vital no minuto de agora, não sou tão ambicioso a ponto de exigir eternidade do que não passa de um piscar de olhos no Tempo. É que eu ainda não me curvei, não sei mais do que isto, nos meus bolsos gavetas guardo poemas poemas poemas nenhum pedaço de papel – tudo que me disseram, o carinho que me fizeram, amor e como mais quiser chamar não perdeu sua força, nem desbotou, colore ainda meus sonhos e passos, me faz caminhar.
Foto: Julia Sweet, Vista Rosa, 2007.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

apenas isto

Ganhamos mais uma noite. É só no que quero pensar. Você diz “fica” que é muito mais difícil, reconheço, do que dizer “vá embora”. Foi por impulso eu sei, instintivo talvez, necessidade de ter onde se agarrar, chame como quiser: amor, pavor, falta de ar – aceito o nome que quiser dar. Não foi nos conhecendo bem que chegamos até aqui, foi dizendo o que o outro queria ouvir, mas isto não deveria ter tanta importância assim, o melhor que fazemos é nos concentrar no gosto bom que tem. Já imaginou como seria insuportável a vida sem um pouco deste doce na boca vez ou outra?

É verdade, eu poderia ser qualquer homem, qual não gostaria de saber o que só eu sei agora?, mas você também poderia ser qualquer mulher, conheço algumas a esta hora da noite, mas não é quem poderíamos ser nem com quem poderíamos estar que conta nesta hora – mas o jogo que nos deixamos jogar e se assim o fizemos tem a ver com o frio que faz lá fora, com a dificuldade que temos de pronunciar certas palavras, tem a ver com nossos corpos e como eles ardem e até com algumas ilusões que preservamos apesar de tudo o que já descobrimos a respeito delas, tem a ver com não sabermos enfrentar nossa solidão de outra forma. Precisamos deste beijo, deste abraço que diz ‘tudo bem, estou aqui com você’, fazermos amor e conversarmos sobre a cor dos seus olhos o meu cabelo bagunçado.

Estamos sempre falando de um paraíso que não existe, de uma idéia errada de paraíso mais do que tudo. Estamos sempre querendo que isto se transforme em algo que não é, talvez mais fácil de controlar, queremos que a certeza se instale por decreto, que caia do céu e seja abençoado, pulamos a parte do suado, do sangrado, do chorado, não respeitamos mais o que há de belo de necessário em ainda se poder cometer erros; em sabermos que o mundo não acaba por tão pouco; em sentirmos que não importa que o outro não nos entenda por completo; em termos consciência de que ferimos mesmo quando não queremos; em estarmos aqui, você, eu, sem que isso precise ter um nome, um fim, um objetivo maior do que dizer, ouvir, tocar, sentir.
Foto: Ricardo Pereira/ modelo: Duda.

ano dois

De um ano para o outro salta aos olhos como nada realmente muda, encontramos tudo como deixamos, o vinho aberto sobre a pia da cozinha, duas taças fazendo-lhe companhia. O que fazer se não despejar o restante pelo ralo? Adeus seu gosto amargo. Abro a torneira, um jato forte e nem sombra mais do líquido vermelho. Arregaço as mangas, passo uma água nas taças, numa delas marca de batom, lembro do brinde que fizemos, o que desejamos para 2008, onde acabamos naquela noite, esboço um sorriso.

Algumas coisas estão fora do seu lugar, outras ainda não têm um lugar, como a tela que ganhei de natal da Cris, um de seus melhores trabalhos, uma bailarina no meio de uma noite verde-clara, não exatamente uma bailarina, apenas o contorno de seu rodopio, agrada-me o detalhe de duas pequenas estrelas no canto direito acima. Todo ano ela me presenteia com algo seu, nas velhas paredes ela é a única artista em exposição, o resto são cartazes de filmes e posters de velhas atrizes, se ela estourar meus herdeiros estarão feitos, sou dono de uma pequena parcela importante da sua obra: daquela feita por amor.

Outra coisa típica de começo de ano é passar as informações da agenda antiga para a agenda nova. Tenho uma mania, escolho aleatoriamente alguns dias do ano e rabisco pequenos compromissos para comigo mesmo, do tipo ir ao cinema, convida-la para jantar, enviar flores, beber com os amigos, reconheço que nem sempre os cumpro a risca mas deixo sempre a possibilidade no ar. A agenda é um hábito novo, nela anoto de tudo, preço de coisas, poemas em estado embrionário, nomes de livros que preciso procurar, telefones de mulheres acompanhados de asteriscos significando a urgência com que devo ligar de volta, restaurantes de que me falaram bem, um vinho do qual li a respeito, datas de aniversário que nao posso esquecer de jeito nenhum, nomes para a minha lista negra, etc. Feito o serviço percebo que o ano é novo... mas a vida é velha.
Foto: Maria Eduarda, Um gole de vinho, 2007.