Já dormíamos juntos mas ainda não havíamos dado um nome àquilo. Como com muitas outras corria o risco de não sairmos disto. Nem discutir o assunto discutíamos. Ficava como estava. Estando bom para ambas as partes. O tempo se encarregaria do resto. Sua presença era delicada. Não me exigia nada além de uma cama. O melhor lugar para fazer. Nem sempre amor às vezes só bagunça. Fiz as contas de quantas noites ela tinha vindo no último mês. Ninguém mais do que ela. Encarei isto como um sinal.
Chamei ela para uma conversa. Era para ser séria mas rimos gostoso. Queria fazê-la entender o que se passava ali entre nós. Achei que talvez lhe faltasse experiência para perceber como fluem certos amores. Nada melhor do que a insustentável leveza do ser. Perguntei se ela tinha lido. Já ouvira falar. Fui até a estante e apanhei o exemplar mais novo que havia. Abri numa página e li aquele que é meu trecho preferido só para lhe dar o gostinho: “...nunca se pode saber aquilo que se deve querer, pois só se tem uma vida e não se pode nem compará-la com as vidas anteriores nem corrigi-la nas vidas posteriores. Seria melhor ficar com Tereza ou continuar sozinho? Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo “esboço” não é a palavra certa porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro. Tomas repete para si mesmo o provérbio alemão: einmal ist keinmal, uma vez não conta, uma vez é nunca. Não poder viver senão uma vida é como não viver nunca.” Ela teve sede e quis mais. Dei a ela o livro de presente como costumo fazer.
Hoje depois de alguns dias de leitura, demorou duas semanas para devorá-lo, estava em fim de semestre na faculdade, o que explica sua pequena demora, ela me deixou um recado na mesa do café, quando acordei dela restava só seu cheiro, escrito a mão numa folha de caderno. Nele sua impressão sobre o que lera como se de um trabalho de escola se tratasse – e que reproduzo abaixo sem alterar uma vírgula:
Vejo-me em Praga, olhando os tanques russos que passam e destroem as minhas ilusões. Ali sou Tereza e Tomas é o meu amor. A minha paixão, o meu ciúme, a minha obsessão. Sou frágil e, no entanto, disposta a tudo por ele. Sinto-lhe nos cabelos o cheiro de outras mulheres. Para Tomas, cada mulher tem uma particularidade que o atrai. É a descoberta do que faz cada mulher única que o motiva. A ligação entre sexo e amor é, para ele, um paradoxo. Eu sei e adoeço de medo, de angústia de o perder.
Agora estou na Suíça, exilada, mas não sou Tereza. Ela está com Tomas em Zurique e eu em Genebra. Chamo-me Sabina e Tomas é o meu amante. Já o era em Praga. Sou livre, tenho opiniões muito minhas, não quero compromissos. Mantenho uma relação mais ou menos estável com Franz, casado com Marie Claude. Mas Tomas é especial. Parecido comigo, talvez. Até aparecer Tereza. Tomas e aquele chapéu-coco que guardo... ingredientes de encontros de que Tereza suspeita, sem ter certezas. Carrego comigo este gosto por seguir em frente sempre leve, sem carregar pesos de relações nem remorsos. Uma insustentável leveza.
Mais tarde... mais tarde serei novamente Tereza regressada ao meu país, sozinha. E Tomas virá atrás de mim, suportando uma vida sem horizontes, sem poder exercer sequer a sua profissão de médico. Terminado o seu gosto pela leveza, afogado no mar da minha ternura.
E no fim estarei numa aldeia escondida da Checoslováquia onde pensarei ter encontrado a paz, a felicidade. Com Tomas e Karenine (que afinal era cadela). A felicidade acaba com o fim trágico de que Sabina toma conhecimento, lá na América para onde seguiu, carregando a sua leveza.
Pensando bem, eu queria ter sido Tereza, Sabina e Tomas. Todos os matizes do amor passam no relacionamento deste triângulo.
Ela passou no teste. Algo que se dá entre aquele romance e ela no qual participo distante. Porque não quero influencia-la mais do que um beijo, simples, leve, ao deixa-la em casa depois de mais um dia de festa. Porque ela precisa entender porque veio, porque está aqui comigo e precisa entender porque parte, porque um dia não estará mais. Precisa viver tudo aquilo que sente, tantas coisas que nem sabe, as idéias que tem hoje, as que terá mais tarde. Daqui há alguns anos se pegará folheando o mesmo livro e se lembrará de tudo o que dissemos e vivemos entendendo que nada que extraímos de suas páginas é mais bonito do que aquilo que sentimos porque nossa história é sempre melhor do que aquelas que nos contam, apenas que, na maioria das vezes, não nos apercebemos disso. Foto: Ricardo Pereira/ modelo: maíra.
Chamei ela para uma conversa. Era para ser séria mas rimos gostoso. Queria fazê-la entender o que se passava ali entre nós. Achei que talvez lhe faltasse experiência para perceber como fluem certos amores. Nada melhor do que a insustentável leveza do ser. Perguntei se ela tinha lido. Já ouvira falar. Fui até a estante e apanhei o exemplar mais novo que havia. Abri numa página e li aquele que é meu trecho preferido só para lhe dar o gostinho: “...nunca se pode saber aquilo que se deve querer, pois só se tem uma vida e não se pode nem compará-la com as vidas anteriores nem corrigi-la nas vidas posteriores. Seria melhor ficar com Tereza ou continuar sozinho? Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo “esboço” não é a palavra certa porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro. Tomas repete para si mesmo o provérbio alemão: einmal ist keinmal, uma vez não conta, uma vez é nunca. Não poder viver senão uma vida é como não viver nunca.” Ela teve sede e quis mais. Dei a ela o livro de presente como costumo fazer.
Hoje depois de alguns dias de leitura, demorou duas semanas para devorá-lo, estava em fim de semestre na faculdade, o que explica sua pequena demora, ela me deixou um recado na mesa do café, quando acordei dela restava só seu cheiro, escrito a mão numa folha de caderno. Nele sua impressão sobre o que lera como se de um trabalho de escola se tratasse – e que reproduzo abaixo sem alterar uma vírgula:
Vejo-me em Praga, olhando os tanques russos que passam e destroem as minhas ilusões. Ali sou Tereza e Tomas é o meu amor. A minha paixão, o meu ciúme, a minha obsessão. Sou frágil e, no entanto, disposta a tudo por ele. Sinto-lhe nos cabelos o cheiro de outras mulheres. Para Tomas, cada mulher tem uma particularidade que o atrai. É a descoberta do que faz cada mulher única que o motiva. A ligação entre sexo e amor é, para ele, um paradoxo. Eu sei e adoeço de medo, de angústia de o perder.
Agora estou na Suíça, exilada, mas não sou Tereza. Ela está com Tomas em Zurique e eu em Genebra. Chamo-me Sabina e Tomas é o meu amante. Já o era em Praga. Sou livre, tenho opiniões muito minhas, não quero compromissos. Mantenho uma relação mais ou menos estável com Franz, casado com Marie Claude. Mas Tomas é especial. Parecido comigo, talvez. Até aparecer Tereza. Tomas e aquele chapéu-coco que guardo... ingredientes de encontros de que Tereza suspeita, sem ter certezas. Carrego comigo este gosto por seguir em frente sempre leve, sem carregar pesos de relações nem remorsos. Uma insustentável leveza.
Mais tarde... mais tarde serei novamente Tereza regressada ao meu país, sozinha. E Tomas virá atrás de mim, suportando uma vida sem horizontes, sem poder exercer sequer a sua profissão de médico. Terminado o seu gosto pela leveza, afogado no mar da minha ternura.
E no fim estarei numa aldeia escondida da Checoslováquia onde pensarei ter encontrado a paz, a felicidade. Com Tomas e Karenine (que afinal era cadela). A felicidade acaba com o fim trágico de que Sabina toma conhecimento, lá na América para onde seguiu, carregando a sua leveza.
Pensando bem, eu queria ter sido Tereza, Sabina e Tomas. Todos os matizes do amor passam no relacionamento deste triângulo.
Ela passou no teste. Algo que se dá entre aquele romance e ela no qual participo distante. Porque não quero influencia-la mais do que um beijo, simples, leve, ao deixa-la em casa depois de mais um dia de festa. Porque ela precisa entender porque veio, porque está aqui comigo e precisa entender porque parte, porque um dia não estará mais. Precisa viver tudo aquilo que sente, tantas coisas que nem sabe, as idéias que tem hoje, as que terá mais tarde. Daqui há alguns anos se pegará folheando o mesmo livro e se lembrará de tudo o que dissemos e vivemos entendendo que nada que extraímos de suas páginas é mais bonito do que aquilo que sentimos porque nossa história é sempre melhor do que aquelas que nos contam, apenas que, na maioria das vezes, não nos apercebemos disso. Foto: Ricardo Pereira/ modelo: maíra.