domingo, 30 de setembro de 2007

nós sempre teremos paris

Você me faz um convite e eu aceito. Precisamos conversar, dançar, entender que não fomos feitos um para o outro – existem milhões de possibilidades e você e eu somos apenas mais uma que aconteceu porque chovia naquele dia e você entrou no primeiro café que encontrou pela frente e a gente se conheceu, só isto, o resto fui eu que criei, que inventei de colocar em forma de poesia. Quanto mais consciência tivermos do quão frágeis e acidentais são as paixões mais nos dedicaremos ao que já temos: não é no amanhã que precisa fazer sentido, na rua na frente dos seus amigos, mas aqui mas agora neste beijo neste quarto nesta noite em que tudo rima perfeitamente – do seu corpo ao meu poema.

Seremos felizes depois disso? De certo que seremos como fomos tantas vezes nas muitas voltas que o mundo dá: conhecer alguém perder alguém e continuar em alguém mesmo depois que a perdemos – é só o mundo girando e a gente tentando e nem sempre conseguindo impedir por isto escrevo, anoto num papel a sua presença – veio, esteve aqui, foi bom, seu nome que é lindo, o dia e a hora eternos. O que você teima em dizer que é “o fim” eu chamo caprichosamente de “trégua”: o amor as noites que você me deu não se devolve, não dá para juntar numa caixa com o seu nome à espera de que você venha apanhar, mas fica na gente como o único presente que realmente valeu. Nós sempre teremos Paris – por mais minúsculo que seja em nossa memória: não os detalhes mas a sensação.

Na sua vida-poema que lugar eu ocupo?, ela quis saber. Ora, você é toda a esperança. Ela achou a sua personagem linda e por pouco não deu de chorar. É, parece que tudo acaba, sentenciou. Puxei ela para mais perto, não só por causa do frio que fazia e conclui baixinho em seu ouvido que “acaba para recomeçar”. Acho que só fiz confundir um pouco mais a sua cabeça e o que ela sentia mas também não é fácil para mim.
Imagem: Jim Carrey e Kate Winslet em cena do filme “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”(2004, Michael Gondry).

terça-feira, 25 de setembro de 2007

noites mulheres pedaços

“... amor será dar de presente um ao outro a própria solidão? Pois é a coisa última que se pode dar de si...” (de Clarice Lispector, em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres)

Conhecer (cumplicidade) – ela disse – significa entrar pela nossa porta a qualquer hora, ter todos os erros de que precisamos para não nos sentirmos sozinhos alienígenas, afinal nos faz ver que não somos os únicos que ‘morrem’ por tão pouco, uma madrugada que não rola fácil, um telefone que não toca, o melhor uísque já foi e a tortura de caminhar sem um cigarro que seja como uma fera cuja jaula não mata a selva dentro dela. Eu chego embriagado de uma outra paixão e você me recebe como se meus crimes e minhas dúvidas fossem sempre benvindos, primeiro nos tratamos com aquela cortesia típica dos amantes mais antigos – como se nada fosse nem precisasse acontecer, tudo já fora dito anteriormente milhões de vezes e repeti-las como se fosse uma desculpa por ser aquela hora da noite e não em pleno meio-dia na grande avenida à vista de todos de quem quer que seja, já perdeu todo o sentido. Viveremos isto como um favor que nos faremos.

Entendemos que nada mais é estranho, novo ou rompe com velhas estruturas, na vida que é sua e de mais ninguém o meu corpo aquece e faz passar a noite (durmo aliviado com isto). Eu sei que existe aquela fagulha de esperança em você em mim em todos nós de que a história possa mudar repentinamente – quem sabe enquanto observamos o outro dormindo nos apeguemos como se entendessemos a solidão que é viver respirar existir. Mas é no cheiro do sexo que nos concentramos, quase que nos policiando de maiores ilusões, afinal mesmo o amor por mais honesto que irrompa tende a nos cravar punhais com o passar dos dias. Eu sei porque já experimentei todas as certezas deste mundo. Fui fundo. Você também, dona das mais lindas olheiras.

Depois achamos que é melhor assim – só um grande teatro a nos consumir: nele você cada vez melhor atriz da peça que eu próprio escrevi para exorcizar meus demônios, ter o que fazer, me distrair. Revejo as noites mulheres pedaços de lábios de corpos que me inspiraram em seus gestos e palavras, a crueldade de outras encenações, a canastrice de algumas interpretações, o achado que são certos cacos, exaustivos ensaios, intrigas de camarim. Troco seu nome com o da personagem, seu nome e o da personagem é o mesmo mas confundo mesmo assim, o palco está vazio mas eu a vejo como desejo crua, nua, charlatã, real. Não pode ser verdade, não posso ser verdade.
Foto: Ricardo Pereira/ modelo: Bruna S.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

o velho cinema

A vida é só uma fachada. Apenas conta-se os dias até que tudo desmorone, venha abaixo, o tempo passe e ninguém se lembre mais. A gente procura viver como todo mundo: cumpre horários, diz bom-dia, senta-se sozinha num restaurante, hesita diante de um prato mais exótico, namora as capas de revista, imagina como seria. Eu vejo pessoas alegres, vejo pessoas tristes, queria ser como elas, experimentar algo que fosse real, invejo quando elas riem e sou forçada a rir com elas como se pedisse licença para existir – quem sabe se naquela noite não sonho algo diferente, um filme, algo que nos faça querer dançar, é tudo o que nos esquenta naquele quarto e sala que é a vida nas grandes cidades. Estamos todos com pressa, ninguém fica o tempo suficiente, se você é uma médica só querem saber o que eles têm, se você é uma garçonete porque o pedido deles está demorando tanto a sair, se você é uma prostituta quanto você cobra por um boquete, se você é uma bilheteira quando começa a próxima sessão – eu pergunto: quando é que vamos poder fumar um cigarro sincero com alguém, rirmos e acharmos graça? Conheça milhões de pessoas e não conheça ninguém.

Eu tenho esperança de que a vida seja mais do que isso e que eu apenas me enganei. Goste de um vestido que veja em alguma vitrine, entre e experimente, veja como fico nele, mesmo sabendo que não posso compra-lo, tem o aluguel, o gás, as refeições e o dinheiro que envio aos meus pais, mas por alguns minutos olhando-me no espelho me sinto distante de tudo aquilo. Dura pouco tempo o que nos faz feliz. Depois digo a vendedora que não sei se ficou bem em mim, que mais tarde volto com o meu noivo e peço que me dê sua opinião. Já na rua, há alguns metros da butique, rio da mentira que contei, pareço boba eu sei.
Image: Edward Hooper – New York Movie(1939).

“O Velho Cinema” assim como “Às quatro da manhã” – publicado anteriormente aqui – faz parte de uma série de pequenos textos que escrevi inspirados nas telas do pintor norte-americano Edward Hooper cuja influência sobre este blogue não se limita a estes textos mas espalha-se pelos demais com maior ou menor peso e também pelas fotos que ilustram muitos deles.

sábado, 15 de setembro de 2007

pelos cantos

Será que nos conhecemos ou formamos apenas sombras? Eu sei quem é você porque inventei-lhe o resto. Nossos corpos se tornaram grandes amigos mas nossas conversas nunca foram muito além disso. Sei onde você têm cócegas mas o que a faz rir ainda me é um grande mistério. Nos apaixonamos pela idéia que fazemos uns dos outros. Eu era os muitos livros que você não leu e você as muitas festas de que ouvi falar. Estranho que não sinta tanta falta assim de você e muito mais das frases que coloquei na sua boca.

O fim é um segundo. Você acorda e não sabe o que está fazendo. Reconheço que o beijo era bom, o cheiro e o sexo, mas às vezes tudo se resume a uma questão de falar e ser escutado. Para o jogo ser limpo não se precisa regras bem definidas mas jogadores que sejam honestos – fomos honestos até onde nos interessava. Eu roubei o que era bom de você e que me faltava e você pegou emprestado o que quis de mim dizendo que devolveria mas até agora nada: está tudo bem, fica pra você, afinal era só poesia mesmo.

Discordo de você: o gosto não fica ruim depois que acaba – é um conhecimento novo quero crer, quem sabe mais um verbete para a minha enciclopédia de dúvida e prazer. De que são feitas as minhas histórias senão daquilo que você esqueceu aqui e não voltou para buscar? Você tem até a próxima campanha do agasalho para vir pegar. Depois disso servirá para aquecer outra e pode ter certeza que aquecerá.
Foto: Ricardo Pereira/ modelo: Maíra.

domingo, 9 de setembro de 2007

ela e o mar

Disse-lhe apontando o mar, “aí está ele, o mar, o mais ininteligível das existências não humanas”, depois voltando-me para ela, “e aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar”. Ela achou aquilo lindo. Quis saber se era meu, não era, tomei de Clarice Lispector. Depois você me empresta o livro, pediu. Fiz que sim com a cabeça. Seria outro em meio a tantos livros que ela me pedia emprestado e nunca se lembrava de cobrar.

Fosse um outro qualquer e só teria reparado na minha bunda, comentou ela. Ah mas eu reparei e muito, conclui apenas que seria mais elegante citar Clarice do que comentar o quanto você fica gostosa neste biquini. Ela riu, estava um pouco alta, não dava para dizer qual dos dois estava mais bêbado.

Isto de caminharmos pela areia da praia naquela manhã foi uma licença que nos demos. Desprendemo-nos naquele instante da superfície para penetrarmos no reino do absoluto. Sentíamo-nos como num filme desses intrigantes em que a maior parte das explicações nunca nos são inteiramente dadas. Fica tudo no ar a espera de uma leitura mais apurada. O tempo nos ensina coisas que nem percebemos quando são por nós aprendidas. Há sempre um momento na vida da gente em que reconhecemos algo novo e no entanto tão familiar. É a surpresa da queda em si. Estava lá antes, só faltava reparar.

Ela vai um pouco a frente. Acompanho o seu balanço. No que estará pensando agora? Eu devia ser o “pé no chão” desta dupla dinâmica fadada ao fracasso mas se ela levanta vôo eu não me controlo e sigo e vou. Estou numa fase em que ouço mais as pessoas, mesmo que elas não tenham muito o que dizer, só pelo prazer de ficar um pouco mais quieto, não quero preocupar mais ninguém além de mim mesmo com as minhas objeções ao mundo.

É cedo. Cedo demais para uma série de coisas. Mesmo colocar em ordem nossas idéias soltas, separar as mais loucas das mais lúcidas. Melhor curtir o restinho de vinho na nossa cabeça. O sol nem bem. O sol nem nada. A gente leve depois de uma noite alta. O mundo o que mais pode ser senão uma grande ilha deserta às nossas costas. Esqueçamos o mundo, busquemos explicações no mar. Em navios tão perdidos quanto nós navegaremos rumo ao incerto.

Ela vira o rosto só para confirmar algo. Ainda estou aqui. Enquanto você quiser, enquanto eu quiser, este é o trato, este é todo o teor do pacto de sangue que fizemos brincando que não era importante mas era. A noite me disse tudo o que sabia sobre amor e era tão inútil convencê-la de que estávamos no caminho errado que eu achei melhor assentir com a cabeça. Fiz bem, ela me deu um beijo e mudamos completamente de assunto. Deixamos a profundidade de lado. Não quero negar a ninguém a chance de se sentir bem com algo que ela acredita em ordem. Chega um dia em que tudo desmorona e a gente aprende com a experiência. Por enquanto não temos pressa, estamos bem livres de tudo.

Eu tinha de dar um telefonema ontem e ela não deixou. Nada existe hoje além do que você pode tocar, foi o que seu gesto quis me dizer. Então a toquei. Tenho a sorte, a imensa sorte, de que ela seja real. Eu sei que mesmo a realidade pode se esvair em fumaça mas por enquanto ela está aqui quente como eu gosto. Nítida na retina.

Penso que teremos de fazer todo o caminho de volta. Acho que ela não se cansa nunca. Um dia ela cansa, penso eu. Cansa de mim. Depois se cansará dela mesmo. Se olhará no espelho e dirá a si mesma que precisa inventar para si um novo estado, uma nova fortaleza. Não poderá mais se comportar como se tudo tivesse graça e não pudesse ser nunca sério. Quando ela chegar a esta conclusão, eu já estarei longe, já serei um fantasma, aproveito e estico o braço. Toco seus ombros. Ela se vira. Faz cara de pergunta. Eu apenas acho ela linda. Mas não digo, ela sabe.

Diz que gosta mais dos poemas que eu escrevo no corpo dela com os olhos do que aqueles que boto no papel. Duvida da palavra. Sabe que eu escrevo o mesmo para todas. Não o mesmo com as mesmas palavras, rimas e imperfeições: o mesmo com o mesmo fim, seduzir e só, preparar a cama para que elas venham e se deitem – só estou reproduzindo uma tese dela, nem digo que está certa nem que está errada, apenas a escuto, qualquer comentário por menor que ele fosse estragaria o mistério. E sem um pouco mistério não somos nada.

Vem me pegar, desafiou ela, correndo em direção ao mar. Fiquei observando ela se afastar, feliz por existir, por ter conhecido mulheres como esta, por ter lido alguns livros que me fizeram diferente, por ser a porcaria de um Ricardo Pereira e não alguém bem mais perfeito. “Só um cão livre hesita na praia”, diz um outro trecho do mesmo conto. Eu me encaixo direitinho no perfil, sou este “cão livre”, algo com o qual os poetas de que mais gosto, os marginais, tanto se parecem, mais vadios que exemplares.

É somente por ser como aquele “cão livre” do conto da Clarice Lispector é que eu posso perambular por ali sem ser enxotado pelos deuses naquele instante à-toa do mundo, enquanto o resto vive a urgência das coisas. Estivesse eu preso às muitas coleiras com as quais a sociedade nos domestica, estaria a esta altura no “desconforto” de uma cama macia dormindo o meu quinhão do sono dos justos mas não, é naquela areia quente que eu me ajeito, descanso meu cansaço de tanta juventude, as dores no corpo de um amor louco, o peso de um vício que me cobra a carne, a poesia de uma vida bandida, meus versos, minha folha corrida.

Ela e o mar travam amizade, ininteligíveis que são se entendem fácil, brincam um com o outro como se não fossem outra coisa senão crianças atarefadas demais consigo próprias. Naquele instante descubro tudo, descubro o que vim fazer no mundo e o quanto inútil é todo o resto, porque nada além disso, nada mais importante do que isto, esta paisagem com mulher e mar ao fundo.
Foto: Ricardo Pereira/ modelo: Michelle.

(trechos extraídos do conto “As Águas do Mundo” In: LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.)

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

três noites atrás

E se eu disser que não sei o nome do que sinto você fica mais algumas noites comigo até descobrirmos? Ás vezes a cama começa algo mas não decifra tudo. Precisamos justificar nossos atos, dar desculpas pelo que somos, inventar regras mesmo que seja apenas para transgredi-las, eu não queria pensar em nada disso naquele momento, apenas apertar contra o meu seu corpo de mil e novecentos e oitenta e nove. Foi um bom ano, tenho feito descobertas neste sentido. Ela é livre e pode me esquecer pelas ruas, mas da cama até a porta do quarto lhe parece uma distância imensa, então ela fica e se apaixona. Está cansada – o “amor” foi bom.

O silêncio é cheio de pequenas conversas – dos olhos, lábios, línguas e dentes, pele, mãos, dedos, pernas e sexo. Escrevo como falo e não como penso. Digo isto apenas para que você faça o mesmo. Se não o meu texto fica frio e distante, meu e mais ninguém entende, prefiro que sua boca o experimente, como drops até o fim – seu sabor será como quiser.

Há muito lhe espero porque você só veio agora?, ela quis saber. A resposta é simples: olhei para o lado e te vi. Mas não posso dizer isto. Está no meu caminho por conta de uma série de acasos que nos remetem até os princípios da humanidade, o primeiro homem, a primeira necessidade do outro, o desejo ainda em seu estado bruto, selvagem, e a gente ali já tão domesticados, civilizados, esquecemos que um dia bastaram grunhidos, gestos com as mãos que hoje seriam obscenos – poesia, amor, deuses, destino, tudo o que utilizamos apenas para encobrir nosso real objetivo: mantermo-nos aquecidos. E se eu disser que não sei o nome do que sinto você fica mais algumas noites comigo até descobrirmos?
Foto: Susan Meiselas, USA Carnaval Strippers, 1973.