domingo, 9 de setembro de 2007

ela e o mar

Disse-lhe apontando o mar, “aí está ele, o mar, o mais ininteligível das existências não humanas”, depois voltando-me para ela, “e aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar”. Ela achou aquilo lindo. Quis saber se era meu, não era, tomei de Clarice Lispector. Depois você me empresta o livro, pediu. Fiz que sim com a cabeça. Seria outro em meio a tantos livros que ela me pedia emprestado e nunca se lembrava de cobrar.

Fosse um outro qualquer e só teria reparado na minha bunda, comentou ela. Ah mas eu reparei e muito, conclui apenas que seria mais elegante citar Clarice do que comentar o quanto você fica gostosa neste biquini. Ela riu, estava um pouco alta, não dava para dizer qual dos dois estava mais bêbado.

Isto de caminharmos pela areia da praia naquela manhã foi uma licença que nos demos. Desprendemo-nos naquele instante da superfície para penetrarmos no reino do absoluto. Sentíamo-nos como num filme desses intrigantes em que a maior parte das explicações nunca nos são inteiramente dadas. Fica tudo no ar a espera de uma leitura mais apurada. O tempo nos ensina coisas que nem percebemos quando são por nós aprendidas. Há sempre um momento na vida da gente em que reconhecemos algo novo e no entanto tão familiar. É a surpresa da queda em si. Estava lá antes, só faltava reparar.

Ela vai um pouco a frente. Acompanho o seu balanço. No que estará pensando agora? Eu devia ser o “pé no chão” desta dupla dinâmica fadada ao fracasso mas se ela levanta vôo eu não me controlo e sigo e vou. Estou numa fase em que ouço mais as pessoas, mesmo que elas não tenham muito o que dizer, só pelo prazer de ficar um pouco mais quieto, não quero preocupar mais ninguém além de mim mesmo com as minhas objeções ao mundo.

É cedo. Cedo demais para uma série de coisas. Mesmo colocar em ordem nossas idéias soltas, separar as mais loucas das mais lúcidas. Melhor curtir o restinho de vinho na nossa cabeça. O sol nem bem. O sol nem nada. A gente leve depois de uma noite alta. O mundo o que mais pode ser senão uma grande ilha deserta às nossas costas. Esqueçamos o mundo, busquemos explicações no mar. Em navios tão perdidos quanto nós navegaremos rumo ao incerto.

Ela vira o rosto só para confirmar algo. Ainda estou aqui. Enquanto você quiser, enquanto eu quiser, este é o trato, este é todo o teor do pacto de sangue que fizemos brincando que não era importante mas era. A noite me disse tudo o que sabia sobre amor e era tão inútil convencê-la de que estávamos no caminho errado que eu achei melhor assentir com a cabeça. Fiz bem, ela me deu um beijo e mudamos completamente de assunto. Deixamos a profundidade de lado. Não quero negar a ninguém a chance de se sentir bem com algo que ela acredita em ordem. Chega um dia em que tudo desmorona e a gente aprende com a experiência. Por enquanto não temos pressa, estamos bem livres de tudo.

Eu tinha de dar um telefonema ontem e ela não deixou. Nada existe hoje além do que você pode tocar, foi o que seu gesto quis me dizer. Então a toquei. Tenho a sorte, a imensa sorte, de que ela seja real. Eu sei que mesmo a realidade pode se esvair em fumaça mas por enquanto ela está aqui quente como eu gosto. Nítida na retina.

Penso que teremos de fazer todo o caminho de volta. Acho que ela não se cansa nunca. Um dia ela cansa, penso eu. Cansa de mim. Depois se cansará dela mesmo. Se olhará no espelho e dirá a si mesma que precisa inventar para si um novo estado, uma nova fortaleza. Não poderá mais se comportar como se tudo tivesse graça e não pudesse ser nunca sério. Quando ela chegar a esta conclusão, eu já estarei longe, já serei um fantasma, aproveito e estico o braço. Toco seus ombros. Ela se vira. Faz cara de pergunta. Eu apenas acho ela linda. Mas não digo, ela sabe.

Diz que gosta mais dos poemas que eu escrevo no corpo dela com os olhos do que aqueles que boto no papel. Duvida da palavra. Sabe que eu escrevo o mesmo para todas. Não o mesmo com as mesmas palavras, rimas e imperfeições: o mesmo com o mesmo fim, seduzir e só, preparar a cama para que elas venham e se deitem – só estou reproduzindo uma tese dela, nem digo que está certa nem que está errada, apenas a escuto, qualquer comentário por menor que ele fosse estragaria o mistério. E sem um pouco mistério não somos nada.

Vem me pegar, desafiou ela, correndo em direção ao mar. Fiquei observando ela se afastar, feliz por existir, por ter conhecido mulheres como esta, por ter lido alguns livros que me fizeram diferente, por ser a porcaria de um Ricardo Pereira e não alguém bem mais perfeito. “Só um cão livre hesita na praia”, diz um outro trecho do mesmo conto. Eu me encaixo direitinho no perfil, sou este “cão livre”, algo com o qual os poetas de que mais gosto, os marginais, tanto se parecem, mais vadios que exemplares.

É somente por ser como aquele “cão livre” do conto da Clarice Lispector é que eu posso perambular por ali sem ser enxotado pelos deuses naquele instante à-toa do mundo, enquanto o resto vive a urgência das coisas. Estivesse eu preso às muitas coleiras com as quais a sociedade nos domestica, estaria a esta altura no “desconforto” de uma cama macia dormindo o meu quinhão do sono dos justos mas não, é naquela areia quente que eu me ajeito, descanso meu cansaço de tanta juventude, as dores no corpo de um amor louco, o peso de um vício que me cobra a carne, a poesia de uma vida bandida, meus versos, minha folha corrida.

Ela e o mar travam amizade, ininteligíveis que são se entendem fácil, brincam um com o outro como se não fossem outra coisa senão crianças atarefadas demais consigo próprias. Naquele instante descubro tudo, descubro o que vim fazer no mundo e o quanto inútil é todo o resto, porque nada além disso, nada mais importante do que isto, esta paisagem com mulher e mar ao fundo.
Foto: Ricardo Pereira/ modelo: Michelle.

(trechos extraídos do conto “As Águas do Mundo” In: LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.)