domingo, 23 de novembro de 2008

sobre ontem a noite

“... há sempre uma estória infeliz esperando uma atriz e um ator...”
(Humberto Gessinger)

Eu vou deixar a chave bem aqui, mostrei a ela onde fica, para quando você quiser sair, nem precisar se despedir, pode ser que de manhã acorde assim sem entender o que faz nesta cama, quem sou eu ou que importância isso possa ter, lembre-se da festa onde a gente se conheceu, do nome do drinque que bebia mas não do meu – tudo bem, já que eu nem perguntei o seu, achei que diria, mas se entendeu que não era necessário quem sou eu para dizer o contrário.

Ali naquela gaveta tenho papel e caneta, mas você não precisa me escrever bilhete algum, não me interessa se sua letra é bonita, nem se as marcas das suas garras nas minhas costas vão desaparecer daqui dois, três dias. Eu já gastei saliva demais com poesia, eu já fui ao fundo e voltei sem saber se voltaria, não há nada mais que meu corpo meu coração precise saber, tudo já teve sentido agora não me importa mais que sentido possa ter, amar é sempre uma aposta, um risco para quem está disposto a correr, mas eu nem quero saber o quanto você está disposta a correr, eu só quero que você fique assim até que eu me canse desta posição.

Rabisquei num pedaço de papel o número do meu telefone e coloquei no bolso de trás da sua calça enquanto dormia, mas pode rasgar e jogar fora quando o achar, isto se o achar, mal sei como é a sua voz, não vou mesmo me lembrar dela se ligar e a noite de hoje é a noite de ontem já. Noite como todas as noites, o mundo dando voltas em torno do mesmo lugar.
Foto dela: Aline Monique.

sábado, 15 de novembro de 2008

para você

A verdade é que nem tudo é uma história da qual você se livra fácil. Fica o peso e o sentido que fazia. Aquilo que por menor que fosse tomava conta do seu mundo, colocava um pouco de ordem, vida dentro de você, justificava porque respirar. Aliás, ela me apareceu por aqui ontem no começo da noite, veio com a desculpa esfarrapada de que queria um livro emprestado. Era tão esfarrapada que ela foi embora de manhã e deixou o livro aqui. E eu nem sei por qual motivo (ou até sei mas não quero descobrir) fiquei ali horas folheando o que escolhera. Como se lesse para ela. O que nunca mais fiz.

É bastante silencioso aqui. Não havia reparado antes. Ainda pouco achei que era seu violão no jardim ou algo bonito que ela leu e correu vir me contar. Não, nada se moveu, tudo permanece onde está. O que ela tirou do lugar eu achei melhor arrumar. Não se usa mais escrever cartas, por isto comecei uma e parei, ela nem vai ficar sabendo, mas estava tudo lá, o que era real e o que era só poesia para ela se apaixonar.
Foto: Ricardo Pereira/modelo: Kel.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

a grande verdade

“... gosto de ser cruel pra chamar sua atenção...”
(Paula Toller)

Algumas mulheres são como poemas que eu gostaria de ter escrito. Outras rabiscado e jogado fora. Funciono assim, o que posso fazer? O mundo é vazio se você não se apaixona. Ou os dias são longos demais ou poderiam durar semanas que você não se importaria. Sou expert em contemplar mulheres saindo do banho e vindo para a cama. Eu vivo por isso, natural que escreva sobre isso. Não vou me casar com a sua filha, não se preocupe, estou apenas ‘esquentando’, ensinando para ela para que serve seus braços, seu colo, lábios, dentes e pernas e um pouco de amor, é claro, algo que ninguém mais sabe. Eu sou o último romântico, eu e a Nana, mas ela é personagem de outra história. De Paranóias, histerias e delírios.

Então ela apanhou o Bukowski que eu andei lendo. Achou um tanto vulgar o modo como ele descrevia sua vida, suas mulheres. Isso te excita? – perguntou mostrando-me o livro. Isso me excita – respondi apontando para o seu corpo. A gente não lê para substituir a vida, a gente lê para dar a vida algum sentido que preste. Ou você pensa que trabalhar e ter algum dinheiro é o suficiente? A cidade lá fora é praticamente um filme de George Romero. Os zumbis já são em maioria aos vivos. Alguns estão até escrevendo livros. Figuram entre os mais vendidos. A boa literatura precisa ter algo de repugnante. É como quando você olha para a sua própria vida e diz ‘não acredito que estou vivendo isso’ – dizer isto é a melhor forma de sacar se você é um dos zumbis ou um dos vivos. A maioria de nós já morreu, o problema é que inventaram excelentes perfumes para nos esconder isso. Da grande verdade que é a morte em vida. Ou sistema capitalista.

Algumas mulheres gostariam que eu simplesmente passasse a mão em suas cabeças. Ora por que não, eu também faço isso, só que cobro pelo serviço. Não há nada de indecoroso em ser um garoto de programa, a maioria dos homens e das mulheres que conheço hoje não passam disso, a diferença é que vão de graça. O que, imaginam, os colocam num nível superior de moral e decência. Como remédio para a solidão é perfeitamente justificável. Pelo menos por alguns minutos temos a sensação de que tudo é real, que somos imprescindíveis, nossos corpos insubstituíveis, mas é durante o café da manhã que não conseguimos disfarçar. Eu também tenho hora no dentista.
Foto: Ricardo/ modelo: Renata Punk.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

work in progress

Eu a peguei folheando meus rascunhos, parecia bastante interessada, sabe que eu não gosto que leiam quando as coisas ainda estão assim, incompletas, pedindo um fim, mas não me atrevi a interrompê-la, estava se apaixonando, e é um privilégio assistir a isso sem que o outro saiba da nossa presença, sentia uma pontinha de orgulho por ter escrito aquelas páginas, por prender sua atenção num dia de sol, aquela papelada já estava ali sobre a mesa há mais de uma semana, à espera dela me parece.

Vejo quando ela sorri ao final de uma página e antes de passar para a seguinte volta os olhos para a anterior como se quisesse gravar alguma frase, algo que talvez eu tenha ‘dito’ com outra intenção, mas da qual ela se apropriava como se ‘aquelas palavras’ a explicassem melhor para si mesma, estas perguntas que nos fazemos muitas vezes na vida e que deixamos no ar para mais tarde respondermos e que um poeta do século passado com uma vida completamente diferente da nossa parece saber direitinho o que significa e porque as fazemos. Naquele instante eu sou como um poeta do século passado com uma vida completamente diferente da dela, ou quem sabe o trecho destacado fosse apenas um comentário sobre mim mesmo, algo que às vezes revelo sem dar-me conta, sem pesar se deveria, como uma falha, um erro, um fraco que nos humaniza perante aquele que a princípio só nos admira, não sabe ainda se pode fazer parte de tudo aquilo, de que maneira pode contribuir.

Isto há muito deixou de ser um romance, não sei mais que direção vai tomar, não me importa mais, nele de tudo cabe, outra noite referi-me a ele como meu ‘dicionário de sentimentos’, tentei explicar o que aquilo significava, depois a conversa mudou de rumo, fomos para a cama mais cedo. Isto também há muito deixou de ser só da minha vida, daquilo que eu posso sentir e revelar, começo um novo parágrafo e não sei onde vou parar. Às vezes chego até você, dou voltas em torno de você, bagunço o seu cabelo, mudo o seu jeito de olhar, depois volto para a casa com uma nova história para contar. Meus personagens não são reais, quem dá vida à eles é que é: em outras palavras, você.
Foto: Ricardo/ela: Gabi L.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

luz natural

“... a falta de ar às vezes é um modo da gente lembrar que respira...”


Reconhece? Este é o meu corpo, aquele da noite passada, que você chamava de um nome índio, que você não acreditava que fosse possível, que eu mesmo não compreendo direito: apenas acato suas decisões, aceito o seu temperamento. Agora o seu papel nesta história é o de um cara se vestindo, personagem número dois deste teatro obsceno que interpretamos como podemos, não o culpo por ir embora, a gente se usa e se joga fora, mas não me olhe assim por cima como se tivesse me ensinado alguma coisa que eu ainda não sei, não combina com a sua expressão cansada de quem sabe que não tem mais nada para me oferecer, eu já fiz curvarem-se diante de mim muitos reis e você, convenhamos, não é rei de nada, só seguiu à risca o manual, a versão 2005 dele fui eu quem rabisquei, tão diferente da atual, naquela a gente se apaixonava, na de hoje entra e sai igual, não rola mais aquela coisa espiritual que sufocava – que sufocava mas era bom: a falta de ar às vezes é um modo da gente lembrar que respira. De que adianta gritar se ninguém vai escutar, você não veio até aqui para resolver todos os meus problemas, nem eu me interesso pelos seus, a vida não é linda? Preciso pagar uma conta, não tenho mais tempo para esta literatura barata que é o amor, esta invenção de cinco segundos, este perfume que me faz lembrar, estas taças abandonadas, este clichê do qual não se escapa, esta cara à tapa, esta luz natural – mas me dê licença que eu preciso atender o telefone, uma amiga quer saber sobre a noite de ontem, digo que me sinto viva, mas não faça essa cara, o que eu sinto está morto, enterrei enquanto você dormia, no quintal. E aproveitando que você está aí de pé me diz o que acha de um tribal aqui nas minhas costas? Foto dela: Aline Monique.