domingo, 20 de julho de 2008

amarelo fica muito bem em você

“... e a solidão das pessoas dessas capitais...” (Belchior, Alucinação)

Na volta para casa começou a ficar preocupado. Já eram quase sete horas e o trânsito não andava. No som do carro seu cd preferido o irritava profundamente, buzinavam atrás dele, ele buzinava, mas tudo era em vão, não chegaria a tempo, já se conformava. Mas quem sabe ela também estivesse presa no trânsito, era uma esperança na qual se agarrava. Ela costuma chegar sempre vinte minutos depois dele, o suficiente para uma ducha rápida. Ontem foi dormir cedo, algo parecia preocupá-la, gostaria de ter conversado com ela, dizer que podia se abrir com ele, todos precisamos de alguém que nos escute, hoje de manhã ela levantou apressada, esqueceu de colocar o relógio para despertar, o copo em que bebeu seu suco ficou em cima da pia, metade do croissant ainda no prato, escolheu um vestido curto, ele viu no jornal que o tempo mudaria, será que ela sentiu frio?, ele chegou a apanhar duas vezes o celular para ligar e perguntar como ela estava mas desistiu, o que será que ela pensaria se o fizesse: ficaria brava, assustada ou agradeceria sua preocupação. Um carro como o dela parou ao seu lado, seria engraçado encontrá-la ali, diria ‘você não morre mais, estava pensando justamente em você’, ela sorriria sem entender bem do que falava e ele explicaria. E se parássemos naquele bistrô do bairro e comêssemos algo, talvez chegasse a sugerir. Ela com certeza toparia, melhor do que aquela lasanha de microondas que tinha para o jantar. Esticou o braço e abaixou o vidro do passageiro para enxergar melhor seu motorista. Não era ela. Examinou mais uma vez o relógio, imaginou onde ela podia estar aquela hora, talvez subisse as escadas devagar, tivera um dia exaustivo na agência, só queria sua cama macia para se atirar, ele faria uma massagem nos seus pés, depois contaria uma piada que um colega de escritório enviou via e-mail, tinha rido muito dela, mas talvez ela não gostasse, acharia um pouco vulgar, quem sabe esperasse um momento mais apropriado para lhe contar, toda mulher gosta de um homem que a faça rir, ele leu numa revista feminina enquanto aguardava sua consulta, quando chegou em casa, olhou-se no espelho e achou que tinha uma cara muito séria, pensou que adiantaria se mudasse seu guarda-roupa, quem sabe com cores mais alegres, ‘amarelo fica muito bem em você’, ouvia-a dizer. Enfim, o trânsito começou a andar. Ele só pensava no que ela vestiria aquela noite: se a rosa ou a azul. Não era a noite da preta. Lembrou da camisola que vira numa loja. Em frente da tabacaria que costuma freqüentar. Quem sabe se lhe fizesse uma surpresa, num embrulho bem bonito, mandaria entregar com um cartão, chegou a rabiscar alguma coisa num papel, mas não era bom com as palavras, rimava sono com a incorrespondente palavra outono*, desistiu da compra quando a vendedora veio perguntar se desejava comprar alguma coisa para a sua esposa. Ele apressou-se em dizer que não tinha esposa no lugar de ‘não quero nada’. Depois ficou envergonhado por dizer aquilo. Afastou-se da vitrine sem olhar para trás. Certo de que a vendedora o achara estranho e comentaria minutos depois com sua colega sobre ele. Deixou cair o pacote com o fumo quando meteu a mão no bolso para apanhar a chave da porta. Entrou, acendeu as luzes, viu que horas eram, tarde, não tinha tempo para uma ducha rápida, foi até a janela, observou o prédio em frente, lá estava ela. Imagem: Edward Hopper, The Night Window, 1928.

* "Não rimarei a palavra sono/ com a incorrespondeente palavra outono./ Rimarei com a palavra carne/ ou qualquer outra, que todas me convém. (...) - do poema de Carlos Drummond de Andrade, "Consideração do Poema".


“Amarelo fica muito bem em você” – assim como “A Vida em três ou quatro linhas”, "Em Alguma Daquelas Janelas", "No que estará pensando", "O Velho Cinema" e "Às quatro da manhã", publicados anteriormente aqui neste blogue – faz parte de uma série de pequenos textos que escrevi inspirados nas telas do pintor norte-americano Edward Hopper cuja influência sobre este blogue não se limita a estes textos mas espalha-se pelos demais com maior ou menor intensidade e também pelas fotos que ilustram muitos deles.