sexta-feira, 30 de novembro de 2007

no que estará pensando

Não me sobrou muito. Meu corpo está triste e minhas idéias mais loucas sossegaram todas em minha cabeça, estou cansada de uma certa ausência de sentido para tudo o que vivo: pago minhas contas, sorrio nas festas, faço número na multidão – o que me ‘alegra’ é saber que ninguém escapa, ninguém que seja de verdade, ninguém que precise comer, sobreviver, morrer um dia. O mundo, claro, ainda me atrai, há ruas e homens que ainda não conheço e sei o que tudo isso significa quando a gente fica pensando assim por mais de dez minutos. Todo mundo já quis estar em outra vida que não a sua, não venha me dizer o contrário, lê aquelas revistas coloridas sobre princesas, mulheres altas e como ser igual a elas, eu deveria estar pensando em outra coisa – que hoje é domingo e posso ficar na cama até mais tarde.


Por que criaram essa ‘fantasia’ toda de felicidade eu me pergunto. Para que fossemos ao cinema e desejássemos a morte por sermos reais demais? Não tenho a segurança dos deuses que controlam tudo da janela de seus apartamentos. Eu sou uma personagem secundária, todo o filme é ali na minha frente, eu sequer tenho falas, entro muda e saio calada, mas aqui entre as minhas pernas eu me caso com cary grant. O telefone nunca toca. Se muito é engano. Querem me vender um plano de saúde. Eu digo que estou morta e é tarde demais. Os russos nos prometeram uma bomba. Aguardo ansiosa. Tudo podia ser bonito. Eu teria pincéis e desenharia, teria amigos que não perguntam simplesmente as horas, bobagens lindas quando ditas numa língua estrangeira. No outro dia eu não voltaria à vida, a vida de todo-o-dia, correta, direta, inflexível – ficaria lá naquela xangri-la, encontrariam-me numa banheira nua e especulariam sobre meus amantes: qual deles não teria suportado me ver nos braços de outro homem? Meu livro seria um escândalo, tudo falso mas rico em detalhes. Não precisaria escrever uma linha – alguém faria isto por mim – escritores vendem a alma fácil.


O sol insiste. Entra pela manhã. Procura meu corpo. Aquece, invade. É só o sol e nada mais está acontecendo que não seja o sol. Daqui a pouco ouvirei música. Virá do rádio. Alguma cantora triste, negra, gostaria de ter um nome francês como o dela. Falará de amor como eu imagino que seja amor, como me disseram que é amor, nada a ver com sujeitos que lhe pagam bebidas. Em seguida, escutarei homens ruidosos. Não estarão vivos por minha causa. Agitam-se numa construção próxima. Mais um arranha-céu nesta cidade que não para de crescer sobre mim. Desta vez se erguerá bem em frente à minha janela. Minha única janela. Bem em frente ao ‘meu’ sol. Meu único amante cativo. Daqui há pouco nem o sol... nem o sol para me ‘aquecer’.
Imagem: Edward Hooper, Morning Sun, 1952.


“No que estará pensando” vem se juntar a “O Velho Cinema” e “Às quatro da manhã”, publicados anteriormente aqui neste blogue – todos fazem parte de uma série de pequenos textos que escrevi inspirados nas telas do pintor norte-americano Edward Hooper cuja influência sobre este blogue não se limita a estes textos mas espalha-se pelos demais com maior ou menor intensidade e também pelas fotos que ilustram muitos deles.

sábado, 24 de novembro de 2007

serpente

“Leve”, ela disse. “Livre” eu entendi – mas sejamos sinceros: não deixa de ser a mesma coisa agora que nada mais pesa, cansa, nos obriga a ser feliz. Ficar aqui (onde?) com você é não estar nem se sentir em nenhum lugar por mais real que seja a casa a cama a cidade de pedra os demônios que nos habitam, nada significa, nada está além “de estar ali”: existe e pronto; existe e daí? Não acredito em Deus acredito no meu corpo e no que ele sente e me diz e hoje Deus atende pelo seu nome – posso chamá-la assim? – diga-me as palavras sagradas, os dez mandamentos que eu mereço, perdoe-me todos os pecados que cometo em Seu nome para que eu cometa outros e seja novamente perdoado e condenado pelo Seu beijo, você que tem Deus e o diabo ao mesmo tempo como se soubesse que é impossível o amor ser só bonito e não também errado.


O mundo ao nosso redor fica nos exigindo coisas: culpa, família, uma certa estabilidade... mas e os furacões, as tempestades, as paixões que não estavam previstas? Sobe-se o vidro? Passa-se o trinco? Corta-se o membro fora? Perambulo por esta sua cidade-fantasma, todos estão mortos eu sei cumprindo o seu belo destino – eu quero um capítulo novo para o meu livro, ávida a VIDA me exige isto, a vida com letras maiúsculas da qual muito se fala mas pouco se experimenta na boca, o gosto e a violência com que nos arrebata, não se tem mais tempo para isto, apenas ocupa-se de viver mecanicamente, acreditando-se na sabedoria dos velhos, no interesse da ordem, na roupa nova do rei, na cura da loucura.

Inteiro – é só assim que se entra. Não há volta nem remendo. Amor só para quem agüenta. Não há só o lado delicado, quem não descobriu isto ainda é porque até agora não foi além das velhas brincadeiras de criança. O que não falta é maça na árvore do conhecimento – que tal uma torta? O paraíso que se dane, o céu, a eternidade. O que faríamos para todo o sempre? Cantaríamos louvores? Seríamos anjos panacas de branco? Ah eu quero mais é rolar na grama contigo e pouco me importa que Deus ‘tá vendo.
Foto: Ricardo Pereira/ modelo: Duda.

domingo, 18 de novembro de 2007

eu sempre retorno aos mesmos lugares


Nunca lhe perguntei o que se passava em sua cabeça naquela manhã de julho quando você foi até as pedras e vasculhou o mar. Em busca de quê, eu deveria ter lhe perguntado. Peguei a câmera e sem saber direito o que apertava registrei aquele segundo mágico. Anos depois vi o que tinha feito num porta-retrato na sua casa. Você me perguntou “lembra?” e eu respondi “como se fosse ontem” comovido por ter vivido tudo aquilo com você. Meses depois no meu aniversário você a me deu de presente. Junto tinha um bilhete com uma frase que você atribuía a mim: “eu sempre retorno aos mesmos lugares”. Era realmente minha mas dita num contexto diferente do qual eu a empregava ela parecia ganhar um outro sentido mais profundo, necessário, urgente quanto mais se vive, como se ‘retornar aos mesmos lugares’ significasse ‘um deixar-se levar no tempo até momentos que não se repetem duas vezes na vida por mais que busquemos reiteradas vezes ao longo dela a sensação que ter estado lá nos provocara’ – é sempre algo entre a esperança de que faça sol e a frustração por estar chovendo. Perdemos a chance de descobrir o quanto a chuva pode conter bem mais poesia. Isto não é literatura, my dear. Literatura é Deus. Isto não é sequer beijar Seus pés – tudo o que eu quero é recuperar no ‘que escrevo’ a poesia daqueles dias.


Eu sempre retorno aos mesmos lugares. Talvez isto explique porque conheça seu corpo tão bem mas também isto não vem ao caso, afinal, não é de você que estou falando mas de mim. “Será?”, você me pergunta com aquele brilho nos olhos de quem sabe que venceu mais uma. Então a questão que devo me fazer é outra: até que ponto é possível me separar de você e contar única e exclusivamente a ‘minha’ história? De você e de todas as outras? Porque já que tocamos no assunto não vamos esquecer ninguém.


Estava jogando umas coisas fora, sonhando o que poderia ter sido, é o que eu faço quando o tempo muda, o frio nos torna mais introspectivos, a bru é linda mas também é muito jovem não entende bem isto, prefiro que ela fique na sala ouvindo seu mp3 enquanto ‘dialogo contigo’. Foi só eu dizer o nome dela para você querer levantar e ir embora, dizendo que eu mudei a regra do jogo com ele em andamento, estávamos indo tão bem (sua vida já estava entrando dentro da minha), apesar de considerar justa a sua reação eu peço que fique, somos velhos amigos, não há mais segredos entre nós, já namoramos em todos os cantos da casa. Eu sempre retorno aos mesmos lugares, lembro da frase enquanto a ‘seguro’ pelo braço. Agora está chovendo onde a gente fez planos. Nada, de certa forma, saiu como planejamos. Mas quando importava, nos dias em que sonhamos, serviu para nos aquecer e a vida parecer completa e definitiva.
Foto: Ricardo Pereira, Cris Tempestade, 2002.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

o teatro trágico

O que viveremos agora se tudo já foi tentado? Não faz mais sentido chorar, sangrar, morrer, tudo é uma histeria dos fracos. Eu sou aos trancos e barrancos o último romântico desta companhia de teatro que é o cotidiano. Você é linda com seus poderes sobre mim, as palavras certas, o corpo que esquenta, a armadilha bem feita é o outro nome que dou ao amor. Experimento de tudo, o que quiser me dar, até o fim, como um rei no seu paraíso.

A gente está cansado, prefere não lutar, deixar que tudo aconteça naturalmente – sem regar nenhum fruto brotará da semente, mas a gente não se convence disso, nos sentimos deuses, superiores, senhores do destino, no lugar de poesia damos ordens: “abra a perna para que eu entre” e o mundo vai perdendo o que é sagrado, foram anos de batalha até aqui e agora que conquistamos dizemos que é lixo depois que usamos no máximo duas vezes, na terceira já perdeu a graça, já não nos faz nenhum favor, já é um saco.

Antes éramos a exceção, agora viramos a regra, abrimos a porta mas só até a metade, não há mais entrega, conversamos e rimos da dor, nossa fome nunca que cessa, cada vez mais e mais precisamos desta sensação de que pertencemos a alguém de que alguém nos pertence, a sensação é tudo o que nos resta porque daqui a pouco será outra festa, outra cama, outra obscenidade no ouvido, outro crime a ser cometido, assassine para não ser assassinado.
Foto: Ricardo Pereira/ modelo: Line

domingo, 4 de novembro de 2007

amor

“...Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,/ reúne alma e desejo, membro e vulva...” (Carlos Drummond de Andrade)

Ao olhar o seu corpo em frente ao espelho – e o espelho sou eu, deitado sobre a cama, a tocar-me – sente como o tempo ficou quente agora que se inicia o inverno e sorri, maliciosa, com as mãos bem abertas sobre os seios. Teria, provavelmente, algo para me dizer, mas só se solta de entre os lábios um suspiro alongado de prazer e perversidade.

Ao olhar o seu corpo junto ao meu – e eu sou este homem aqui, à espera, descentrado na fotografia – sabe que mais um dia passou, e que será também num dia como o de hoje que sentirá o meu membro ereto a invadir-lhe a vagina e a deliciar-se, molhado, na sua abundante excitação. Ao pensar nisso, provavelmente, só um suspiro, ainda mais alongado, se solta de entre os seus lábios mordidos.

Ao olhar o seu corpo nesta cama por fazer – e esta cama é apenas o que resta de todo o sexo apaixonado que fizemos de manhã – imagina que muitas outras manhãs, tardes e noites se seguirão com os nossos cheiros integrando-se num só perfume. Imagina também que o poder de dois corpos, de duas almas que se querem e se perseguem, dificilmente pode ser quebrado quando reunido assim, intensamente, e provavelmente terá toda a razão.
Foto: Ricardo Pereira/ modelo: Bruna S.