Lá estava você a examinar os livros, um pouco curiosa, um pouco enfadada; sondava demoradamente, por vezes apanhava um, abria ao acaso, lia umas frases, espreitava a etiqueta com o preço, pousava de volta. Não parecia procurar algo em particular; talvez estivesse apenas a matar o tempo, ou aguardava a chegada de alguém; ou talvez esperasse ser surpreendida por algum dos livros, talvez esperasse ser subitamente arrebatada por umas linhas lidas ao acaso, sussurradas pelo destino. Fui olhando, com curiosidade; espiando. Começando a gostar de você.
Havia muitas pessoas entre nós, conversas e risos: e você completamente indiferente, alheia; mesmo quando alguém passava junto de você e a tocava, não olhava. Pegava os livros, simplesmente; sem reverência, sem aquela devoção aflitiva que alguns desesperados dedicam aos livros. Por vezes, esticava o braço para pegar um livro mais distante e a manga da camiseta subia, revelando uma pequena tatuagem. Vira-a diversas vezes, sentindo-me desagradado: surpreende-me que mulheres bonitas deteriorem o seu corpo com manchas de tinta, com pedaços de metal, que escondam metade do rosto com ridículos óculos escuros, que segurem um cigarro entre os dedos convencidas de que isso é um gesto de sedução. Estive quase a afastar-me, decepcionado, quase vencido pelos meus preconceitos. Mas entretanto percebi que você se afastava, levando um livro na mão. E a segui, impelido pela curiosidade de descobrir qual fora, afinal, a sua escolha.
Dirigia-se para o espaço dedicado a música, onde caminhava entre as prateleiras, pegavas alguns CD's, conferia as promoções. Consegui então identificar a capa do livro que segurava; e não me decepcionara. De novo curioso, de novo seduzido, estudei você com mais atenção; a saia solta, revelando joelhos magros; a camiseta justa, delineando os seios; um cinto coberto de brilhantes; pulseiras, anéis; elegância cuidada, sedução discreta. Fui imaginando um quarto vasto e elegante, coberto de sol; e você nua, escolhendo cada peça de roupa, cada acessório; preparando-se para enfrentar o mundo, discreta e bela.
Apanhou um CD e procurou onde escutá-lo, permaneceu alguns minutos ouvindo o teu CD, dançando quase que imperceptivelmente. Depois, juntou-o ao livro e se afastou em direção ao caixa. Saia a balouçar, tilintar de pulseiras, cabeça erguida, passos firmes. Fiquei a olhar, enquanto se afastava: memorizando o seu corpo. Despedindo-me.
Corri para o fone de ouvido que ocupara, onde a sua seleção ainda estava ativa; fiquei ali ouvindo, sentindo a volúpia de estar a ser tocado por um objeto que acabara de ser tocado por você. E aí permaneci muito tempo, sentindo você através dos fones de ouvido, tocando você (recebendo o seu toque) através daqueles fones. Pensando que há sempre intermediários, há sempre mediadores que nos unem mas, simultaneamente, impedem a entrega total; porque tudo o que nos aproxima de alguém pode representar, também, uma última defesa, uma derradeira possibilidade de fuga, de adiamento, de suspensão. Como os corpos: permitem que os usemos para concretizar o amor que sentimos pelo outro, para satisfazer o desejo que sentimos pelo outro; mas são precisamente os corpos que nos impedem de alcançar o amor pleno, o amor além-corpo que secretamente ambicionamos, o amor utópico que deveria existir para além do corpo, da morte, do tempo. O amor infinito. Apertei os fones contra as orelhas e fechei os olhos. Pensando: tranqüiliza-nos saber que nunca seremos totalmente de alguém; mas entristece-nos saber que aqueles que amamos nunca serão totalmente nossos.
Antes tinha fantasias normais. Olharia você e imaginaria como seria afastar o vestido e lamber seu mamilo, imaginaria a sua textura, o seu sabor, a sua consistência, a sua elasticidade; imaginaria os seus suspiros, os seus gemidos, os seus silêncios; imaginaria que me apertaria contra você, talvez com violência, talvez com impaciência, talvez com ternura. Imaginaria a suavidade das suas coxas, a firmeza das suas nádegas. Imaginaria a sua roupa íntima, imaginaria se seriam fáceis de despir. Imaginaria como seriam os seus pêlos púbicos, se seriam incomodativos quando beijasse o seu sexo. Imaginaria como seria foder você no banco traseiro de um carro parado no estacionamento subterrâneo do shopping. Imaginaria o seu sorriso, no fim. Antes. Agora, cansei-me de fantasias que jamais se concretizarão. Olho alguma mulher bonita, como você, e imagino como se chamará. Nada mais.
Acabei por comprar o mesmo CD, o mesmo livro. Não voltei a ouvir o CD e o livro desinteressou-me completamente a partir da vigésima linha. Mas ambos me lembram que você existe, em algum lugar. Uma pessoa concreta. Uma possibilidade: tocamo-nos, por momentos, unidos por aqueles fones; e poderia ter acontecido, pode sempre acontecer mais qualquer coisa. Foto: Ricardo Pereira/ modelo: Mirela.