quarta-feira, 27 de agosto de 2008

os sobreviventes

“... se sobrevivemos não há mais nada para sabermos...”


Hoje é dia de recolher nossas coisas pelo chão: roupas, chaves, documentos. Estava aqui vendo sua foto do r.g., devia ter uns dez anos a menos, pensei ‘que bela mulher você vai ser’, já tinha como saber. Ontem não havia como se conter. Estávamos numa festa no Centro quando você me perguntou ‘no meu ou no seu apartamento?’. Abri a porta para ela que entrou e ficou à vontade. Conversamos sobre primeiras impressões, ouvimos Esperanza Spalding, ainda sobrou um restinho de vinho.

Estou me apaixonando enquanto você dorme, já tive duas namoradas com o mesmo nome, quatro com essa cor de cabelo, seis só este ano, estou anotando tudo num caderno para não me perder quando me perguntarem quem é você (‘quem era aquela da festa’), mas sei que estou louco por outra noite igual a esta, será que meu coração de segunda mão lhe interessa? Não precisa responder agora, não tenha pressa, deixei reservada esta sexta-feira para beijar você inteira, dos pés à cabeça.

Ainda não é a história que eu quero contar, pela qual já posso até morrer, apenas algo que rabisquei enquanto você não se decidia, tomando o seu café em pé na minha cozinha. Não falo de amor, nem você nem eu nos importamos mais com o que isto significa. Ou significou um dia. Se sobrevivemos não há mais nada para sabermos. Eu prefiro o lado esquerdo, a cor da minha escova é verde, quando escrevo gosto de silêncio.
Foto: Ricardo/ ela: Karen.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

do capítulo 'pendências amorosas'

para você nana

Eu estava com umas pendências amorosas para resolver. Sabe aquele restinho que fica entre ela e você que basta um olhar para a coisa inflamar? É bom ter para o que voltar. O mundo é feito das impressões que deixamos naqueles que tocamos: estive aqui, passei por ali, em alguns corpos até se pode ler. Mas agora acho que já rolamos na cama tudo o que restava. Definitivamente amor não era mais o assunto enquanto a gente se trocava. Eu ajudei ela com o lençol, depois esvaziei o cinzeiro, sei o lugar onde ela o guarda, vou sentir saudade do ‘lugar onde ela o guarda’, apanhei meu celular, meu relógio, dei uma última olhada. Devolvo a cópia da chave que ela me deu, não chego mais de madrugada. Da próxima vez que vier me visitar, tomaremos chá. A porta não está fechada, somente encostada, ela me mostra que é só empurrar. Faço o teste e ela ri. Da rua me viro e a vejo na janela. Ela estava lá e não está mais. Foi cuidar da sua vida, eu vim cuidar da minha: de você quero dizer. Por que estou contando isso? Você fez aquela cara de que não precisava. De certo que não precisava. É só para lembrar que o que começa também acaba. Prefiro que seja assim sem dor nem para mim nem para você. A gente começou amigo, depois é que o fogo pegou. Até quando é algo que não se pode prever, apenas viver para saber. Foto: Ricardo/ ela: Helena.

domingo, 10 de agosto de 2008

que se dane o amor que acaba

“... não há literatura, só há vida; não há vida, só há literatura; não há começo, não há fim...”

Dou milhões de voltas e acabo sempre aqui. Ensina-me a dançar?, pergunto e ela ri. Não precisamos carregar nada além do peso de nós mesmos. Eu digo a ela como se tivesse uma faca, quisesse sangue: tem uma criança morrendo de fome neste exato instante, no mundo, em algum lugar, já parou para pensar que essa sua vontade de chorar, de se descabelar, é uma grande bobagem diante de tanta injustiça que há. Que se dane o amor que acaba, que se dane. Prefiro quando acaba, abrem-se novas possibilidades. Há tantas pessoas interessantes pelo mundo, você só estava com preguiça de procurar. O amor é isso: uma grande preguiça de procurar. Por isso inventaram o controle remoto, o sofá, para a gente se acomodar. Eu já vivi tanto isso que tenho as respostas todas na ponta da língua, vem pegar. Não vim para passar a mão na sua cabeça, vim para lhe esquentar. Não sei de coisa melhor para o frio que está fazendo do que isto mesmo que você acabou de pensar. “Apenas bons amigos” escreveram sob a nossa foto. Mal sabem eles. Prefiro quando não se combina nada, na volta do cinema, prometo que vou me comportar, mas não posso jurar com essa sua língua dentro da minha orelha. Foto: Ricardo/ela: Kel.

sábado, 2 de agosto de 2008

a esta hora da noite

A esta hora da noite, a vida é o único lugar aberto. Pode parar de procurar. Não existem cafés como nos filmes, nem tortas de blueberry esperando. Estou ouvindo o último presente que me deu. A trilha do filme My Blueberry Nights – não me recordo o título em português*. Na verdade só estou ouvindo a faixa número um – acho que pela nona vez. Eu vi primeiro, disse que você se apaixonaria e você se apaixonou. “Gostei mais do que Closer”, comentou. Eu ainda prefiro aquele. Quis saber se eu já tinha experimentado blueberry. Respondi que sim. “E qual o gosto?”, perguntou. Lembra pitanga, framboesa. E você fez aquela cara de quem não parece convencida de que eu realmente provei blueberry. Só porque eu sou metido a profundo conhecedor de tudo não quer dizer que eu não saiba do que estou falando.

Você vai ficar fora por dois dias. Maldito congresso de odontologia. Será que você dormiu enquanto folheava o livro que levou? Ficou de me ligar e ainda não ligou. Nós temos uma espécie de código. Ela me liga, dá um toque só, para saber se estou acordado, para saber se não estou ‘ocupado’, para saber se estou interessado. Identifico o número e se quero ligo de volta e a gente conversa o que vier a cabeça, desde o que ela achou das palestras até o que ela está vestindo agora, minhas mãos subindo por entre suas pernas. Ela sabe que não estou dormindo. Conhece meus hábitos noturnos. Madrugada é a melhor hora do dia. Mesmo quando ela está aqui, dormir de conchinha só os dez primeiros minutos. A noite inteira é mito. Meu braço direito, embaixo dela, fica dolorido. Deixo a cama devagar, faço tudo para ela não acordar, a observo por algum tempo, depois vou escrever um pouco, ouvir uns velhos discos, a cidade lá embaixo.

Enquanto espero começo uma partida de sinuca. Você nunca joga comigo, diz que minha velha mesa não combina com ‘sua’ decoração. Depois de algumas jogadas desisto. Aprecio a formação que as bolas coloridas fazem espalhadas pelo pano verde. Gosto de imaginar todas as possibilidades, qual será a próxima a cair. Fiz pouquíssimas vezes sobre a mesa, nenhuma com você. Devo admitir que é um tanto desconfortável. Os filmes dão uma impressão errada da vida. As bolas espalhadas pelo pano verde lembram nossas roupas deixadas pelo caminho. Sou sempre eu a recolher, você reclama que não encontra a calcinha, que eu brinco de esconder. Gosto desta tua omnipresença, está na mesa em que nunca fizemos, na música que estou a ouvir, no livro que falta na estante, no telefonema que espero para o próximo instante.
Imagem: Norah Jones e Jude Law em cena do filme “My Blueberry Nights”(2007, Wong Kar-Wai).


*Um beijo roubado.

Clique no link abaixo e ouça “The Story” com Norah Jones. A música que estou ouvindo acho que pela nona vez.