para três, quatro de dez anos atrás
Há quanto tempo, pensei quando a vi e você me disse que pensou a mesma coisa. E era verdade. E era saudade também. Não nos lembrávamos quando tinha sido a última vez, não queríamos lembrar era o mais provável, acho que depois daquela festa na casa de não sei quem em que fomos embora mais cedo sem nos despedirmos de ninguém e no caminho discutimos por causa de não sei quem e não discutíamos por causa de ninguém mas por culpa de nós mesmos, era só uma forma de colocar a culpa numa terceira pessoa que não existia sequer na cabeça da gente. Na semana seguinte você veio pegar suas coisas, sabia que eu não estaria em casa aquela hora do dia, deixou a cópia que tinha da chave com o porteiro e nunca mais apareceu, nem um bilhete escreveu (“não sou tão boa com as palavras como você”), queria lhe dizer que você ficou com um livro meu, talvez sem o saber que me pertencia, pensei em ligar pedindo ele de volta mas achei que você entenderia isso como uma desculpa minha para confundir sua cabeça outra vez. Alguns meses depois encontrei uma outra edição numa sebo que gosto e comprei. Mas não era a mesma coisa, não era o mesmo livro de certa forma, nem era a mesma idéia que eu fazia dele, perguntava para que me servia toda aquela poesia, desnessária, inútil, para certas conversas que tivemos, acho que nunca mais o folheei, vinha-me a cabeça quando o procurava na estante a idéia de que você ainda o lia e que quando o fazia pensava por alguns minutos em mim e em onde eu estaria naquelas noites em que lha faltava poesia, depois achava que aquilo era coisa só da minha cabeça, que você nem lembrava mais que aquele livro me pertencia ou que um dia você me pertencera também. Por isso não perguntei mais do livro, nem naquele dia, nem quando você me passou seu novo telefone eu liguei como não liguei para o número velho também, o velho que você achou que eu tinha mas fazia tanto tempo que a gente não se via que provavelmente o velho telefone a que você se referia eu nunca tive também. Mas foi bom. Foi bom lembrar que já tive vinte anos e que quando tive vinte anos você tinha vinte anos também. Foi bom lembrar toda a maluquice que a gente fazia e tudo o que a gente pretendia fazer. E como em certo momento eu já não tinha mais certeza se toda a maluquice que a gente dizia que fazia a gente realmente fez ou só disse que fazia ou será que fez mas com outras pessoas e que agora confundia. Como a viagem da qual me lembrei e que agora sei que a gente jamais a fez. Fui ver as fotos do que eu dizia e era outra que ao meu lado sorria. Mas algo naquela que me sorria me fazia se lembrar de você também. E nem era porque ambas se pareciam porque ambas não se pareciam nem um pouco. É porque me lembrar de você, dela, de quem mais seria, me devolve um pouco da poesia daqueles dias, da poesia que aquele livro dizia e que você acho nem sabe se ainda o tem. Foto: Ricardo Pereira/modelo: Duda.
Há quanto tempo, pensei quando a vi e você me disse que pensou a mesma coisa. E era verdade. E era saudade também. Não nos lembrávamos quando tinha sido a última vez, não queríamos lembrar era o mais provável, acho que depois daquela festa na casa de não sei quem em que fomos embora mais cedo sem nos despedirmos de ninguém e no caminho discutimos por causa de não sei quem e não discutíamos por causa de ninguém mas por culpa de nós mesmos, era só uma forma de colocar a culpa numa terceira pessoa que não existia sequer na cabeça da gente. Na semana seguinte você veio pegar suas coisas, sabia que eu não estaria em casa aquela hora do dia, deixou a cópia que tinha da chave com o porteiro e nunca mais apareceu, nem um bilhete escreveu (“não sou tão boa com as palavras como você”), queria lhe dizer que você ficou com um livro meu, talvez sem o saber que me pertencia, pensei em ligar pedindo ele de volta mas achei que você entenderia isso como uma desculpa minha para confundir sua cabeça outra vez. Alguns meses depois encontrei uma outra edição numa sebo que gosto e comprei. Mas não era a mesma coisa, não era o mesmo livro de certa forma, nem era a mesma idéia que eu fazia dele, perguntava para que me servia toda aquela poesia, desnessária, inútil, para certas conversas que tivemos, acho que nunca mais o folheei, vinha-me a cabeça quando o procurava na estante a idéia de que você ainda o lia e que quando o fazia pensava por alguns minutos em mim e em onde eu estaria naquelas noites em que lha faltava poesia, depois achava que aquilo era coisa só da minha cabeça, que você nem lembrava mais que aquele livro me pertencia ou que um dia você me pertencera também. Por isso não perguntei mais do livro, nem naquele dia, nem quando você me passou seu novo telefone eu liguei como não liguei para o número velho também, o velho que você achou que eu tinha mas fazia tanto tempo que a gente não se via que provavelmente o velho telefone a que você se referia eu nunca tive também. Mas foi bom. Foi bom lembrar que já tive vinte anos e que quando tive vinte anos você tinha vinte anos também. Foi bom lembrar toda a maluquice que a gente fazia e tudo o que a gente pretendia fazer. E como em certo momento eu já não tinha mais certeza se toda a maluquice que a gente dizia que fazia a gente realmente fez ou só disse que fazia ou será que fez mas com outras pessoas e que agora confundia. Como a viagem da qual me lembrei e que agora sei que a gente jamais a fez. Fui ver as fotos do que eu dizia e era outra que ao meu lado sorria. Mas algo naquela que me sorria me fazia se lembrar de você também. E nem era porque ambas se pareciam porque ambas não se pareciam nem um pouco. É porque me lembrar de você, dela, de quem mais seria, me devolve um pouco da poesia daqueles dias, da poesia que aquele livro dizia e que você acho nem sabe se ainda o tem. Foto: Ricardo Pereira/modelo: Duda.