domingo, 18 de maio de 2008

a vida em três ou quatro linhas

Comecei escrevendo obituários para um jornal da minha cidade. Foi meu primeiro emprego. Tinha pouco mais de dezoito anos de idade. Segundo meu editor, era muito bom no que fazia. Aprendi sobre a morte e mais do que isto que não importava como tinha sido a sua vida que ela sempre caberia em três, quatro linhas, às vezes em menos ainda, dependia do quanto sua família estivesse disposta a pagar por aquelas linhas. Às vezes era preciso florear um pouco, a maioria das pessoas só estuda, arranja um trabalho, casa e tem filhos, netos – é muito pouco para tornar uma vida interessante aos olhos de quem fica. Sobretudo quando se sabe que está se seguindo o mesmo caminho.

Eu tinha essa mania, diriam mórbida, de rascunhar como seria o meu. Eu tinha dezoito anos e havia tanta coisa que eu queria fazer que em três, quatro linhas, de certo, não caberia. Pensava em todas as mulheres, livros e viagens. Pensava de que forma seria o meu fim. Velho com sua jovem amante era a minha preferida: o coração pararia de tanto amor. Um amigo de longa data faria um discurso embriagado, lembraria as farras de juventude, algum sucesso, algum fracasso – ah a dignidade dos que partem, tudo pode ser ressignificado, contado diferente, feito de uma forma diferente, acho belo o modo como modificamos o nosso passado. O que me lembro da infância foi tudo inventado.

Foram quase dois anos naquele emprego, naquele jornal, apesar de cobrir outros assuntos que o cotidiano demandava, era na seção de obituários que eu me concentrava. Foi ali que descobri a poesia, seu poder de síntese, como era preciso resumir tudo ao estritamente necessário: a vida e tôdas as suas possibilidades à vida e tudo o que se pôde fazer dela – há uma diferença muito grande entre uma e outra. Esta ‘diferença’ entre elas era no que consistia o meu trabalho: pintar um quadro colorido somente com duas tintas – a preta e a branca. Segundo meu editor, era muito bom no que fazia. Aprendi sobre a morte e mais do que isto que não importa como você viva a sua vida desde que ela não caiba em três, quatro linhas.
Imagem: Edward Hopper, Excursion into philosophy, 1959.

"A Vida em três ou quatro linhas" – assim como "Em Alguma Daquelas Janelas", "No que estará pensando", "O Velho Cinema" e "Às quatro da manhã", publicados anteriormente aqui neste blogue – faz parte de uma série de pequenos textos que escrevi inspirados nas telas do pintor norte-americano Edward Hopper cuja influência sobre este blogue não se limita a estes textos mas espalha-se pelos demais com maior ou menor intensidade e também pelas fotos que ilustram muitos deles.