
Eu tinha essa mania, diriam mórbida, de rascunhar como seria o meu. Eu tinha dezoito anos e havia tanta coisa que eu queria fazer que em três, quatro linhas, de certo, não caberia. Pensava em todas as mulheres, livros e viagens. Pensava de que forma seria o meu fim. Velho com sua jovem amante era a minha preferida: o coração pararia de tanto amor. Um amigo de longa data faria um discurso embriagado, lembraria as farras de juventude, algum sucesso, algum fracasso – ah a dignidade dos que partem, tudo pode ser ressignificado, contado diferente, feito de uma forma diferente, acho belo o modo como modificamos o nosso passado. O que me lembro da infância foi tudo inventado.
Foram quase dois anos naquele emprego, naquele jornal, apesar de cobrir outros assuntos que o cotidiano demandava, era na seção de obituários que eu me concentrava. Foi ali que descobri a poesia, seu poder de síntese, como era preciso resumir tudo ao estritamente necessário: a vida e tôdas as suas possibilidades à vida e tudo o que se pôde fazer dela – há uma diferença muito grande entre uma e outra. Esta ‘diferença’ entre elas era no que consistia o meu trabalho: pintar um quadro colorido somente com duas tintas – a preta e a branca. Segundo meu editor, era muito bom no que fazia. Aprendi sobre a morte e mais do que isto que não importa como você viva a sua vida desde que ela não caiba em três, quatro linhas. Imagem: Edward Hopper, Excursion into philosophy, 1959.
"A Vida em três ou quatro linhas" – assim como "Em Alguma Daquelas Janelas", "No que estará pensando", "O Velho Cinema" e "Às quatro da manhã", publicados anteriormente aqui neste blogue – faz parte de uma série de pequenos textos que escrevi inspirados nas telas do pintor norte-americano Edward Hopper cuja influência sobre este blogue não se limita a estes textos mas espalha-se pelos demais com maior ou menor intensidade e também pelas fotos que ilustram muitos deles.