segunda-feira, 26 de maio de 2008

os pensamentos

“... porque todos vivemos a mesma vida só que de uma forma diferente...”


E de repente me lembro daquele dia, há muito tempo atrás, em que encontraria-me com ela só às nove da noite e em que ela me ligava de hora em hora – em ponto – até às oito da noite, apenas para dizer quanto tempo faltava até nos vermos: seis horas, cinco horas, quatro horas... Foi há tanto tempo, mas me peguei a pensar nesse dia, assim de repente como se precisasse escrever algo sobre ele urgente e estranhasse não o tê-lo feito ainda.

Surpreende-me que ainda lembre do vestido bege com pequenas flores vermelhas que ela usava nessa noite, do seu perfume fresco delicado jasmin, da pele morena mais morena que no dia anterior, do seu sorriso rasgado do outro lado da rua ao me ver se aproximar, do vermelho do semáforo que nunca que abria e da primeira coisa que ensaiava dizer-lhe e que acabou não saindo.


Essa recordação assalta-me os pensamentos e não percebo o porquê. Faz tanto tempo que não a vejo, que não a ouço, que nem sequer penso nela. Fomos ao cinema, rimos muito e andamos a pé pela cidade deserta, à procura de um último lugar aberto. Mas não me lembro do filme, nem das piadas que a fizeram rir e nem das ruas por onde passamos. Só do cheiro, da espera, das pequenas flores vermelhas.
Foto: Ricardo Pereira/ modelo: Aretha.

domingo, 18 de maio de 2008

a vida em três ou quatro linhas

Comecei escrevendo obituários para um jornal da minha cidade. Foi meu primeiro emprego. Tinha pouco mais de dezoito anos de idade. Segundo meu editor, era muito bom no que fazia. Aprendi sobre a morte e mais do que isto que não importava como tinha sido a sua vida que ela sempre caberia em três, quatro linhas, às vezes em menos ainda, dependia do quanto sua família estivesse disposta a pagar por aquelas linhas. Às vezes era preciso florear um pouco, a maioria das pessoas só estuda, arranja um trabalho, casa e tem filhos, netos – é muito pouco para tornar uma vida interessante aos olhos de quem fica. Sobretudo quando se sabe que está se seguindo o mesmo caminho.

Eu tinha essa mania, diriam mórbida, de rascunhar como seria o meu. Eu tinha dezoito anos e havia tanta coisa que eu queria fazer que em três, quatro linhas, de certo, não caberia. Pensava em todas as mulheres, livros e viagens. Pensava de que forma seria o meu fim. Velho com sua jovem amante era a minha preferida: o coração pararia de tanto amor. Um amigo de longa data faria um discurso embriagado, lembraria as farras de juventude, algum sucesso, algum fracasso – ah a dignidade dos que partem, tudo pode ser ressignificado, contado diferente, feito de uma forma diferente, acho belo o modo como modificamos o nosso passado. O que me lembro da infância foi tudo inventado.

Foram quase dois anos naquele emprego, naquele jornal, apesar de cobrir outros assuntos que o cotidiano demandava, era na seção de obituários que eu me concentrava. Foi ali que descobri a poesia, seu poder de síntese, como era preciso resumir tudo ao estritamente necessário: a vida e tôdas as suas possibilidades à vida e tudo o que se pôde fazer dela – há uma diferença muito grande entre uma e outra. Esta ‘diferença’ entre elas era no que consistia o meu trabalho: pintar um quadro colorido somente com duas tintas – a preta e a branca. Segundo meu editor, era muito bom no que fazia. Aprendi sobre a morte e mais do que isto que não importa como você viva a sua vida desde que ela não caiba em três, quatro linhas.
Imagem: Edward Hopper, Excursion into philosophy, 1959.

"A Vida em três ou quatro linhas" – assim como "Em Alguma Daquelas Janelas", "No que estará pensando", "O Velho Cinema" e "Às quatro da manhã", publicados anteriormente aqui neste blogue – faz parte de uma série de pequenos textos que escrevi inspirados nas telas do pintor norte-americano Edward Hopper cuja influência sobre este blogue não se limita a estes textos mas espalha-se pelos demais com maior ou menor intensidade e também pelas fotos que ilustram muitos deles.


terça-feira, 13 de maio de 2008

a noite mais fria do ano

A marca de cigarro que ela fuma, o livro que tirou do lugar, a taça em que bebeu, o disco que colocou para tocar. O brinco que ela esqueceu, a promessa de que vai voltar, o nome que ela me deu, o perfume que deixou no ar. A atriz que ela me lembra, o filme que eu quis rodar, o telefone fora do gancho, a bagunça que ficou para contar. A noite mais fria do ano, nem chegamos a notar, a tatuagem que ela fez, nem queira saber o lugar.

Duas xícaras de café, ela toma o dela sem açúcar, na toalha que usou, alguns fios de sua cabeleira ruiva. Os segredos que não existem mais, entre o meu corpo e o dela, quem disse que para ser ‘romântico’ precisa luz de velas. O nome da sua rua, número do apartamento e andar, “quando quiser” – disse ela – “sabe onde me encontrar”. Essa coisa de pele que não tem como evitar, descubro onde sente cócegas, ela me conta o que a faz chorar.

Pego-me assobiando, a música que ela quis dançar, não encontro o outro pé do sapato, procuro embaixo do sofá. Na gola da camisa, marca de batom vermelho, não consigo decifrar o que escreveu no espelho. Posso colocar tudo em ordem, de volta no seu lugar, mas os vestígios da sua passagem não tem como apagar. É só um primeiro rascunho, da história que eu queria contar, mas publico assim mesmo, acho que ela vai gostar.
Foto: Ricardo Pereira/ modelo: Gabi L.

domingo, 4 de maio de 2008

'algo que tivesse anjos'

para Gabi L.

Combinamos de dar uma volta. As ruas estavam vazias e tranqüilas, podíamos prestar atenção só um no outro, de certa forma a cidade ao nosso redor não existia mais ou quem sabe fosse apenas um cenário que se adaptasse aos nossos caprichos, não tínhamos pressa nem outra vida diferente planejada para mais tarde. Era somente isto que eu queria dizer para começar, o resto deixo por sua conta imaginar, que tom de céu prefere, como nos vestiamos e que desalinho o vento havia feito em nossos cabelos.

Ela perguntava do meu trabalho, como devia ser fascinante, coisa que eu não acho, mas deixei que falasse. Ela ainda estava na faculdade, o que na cabeça dela a colocava em desvantagem em relação a mim, quis saber sua opinião sobre o curso mais como quem se aproveita de um assunto que surgiu em meio a conversa do que por curiosidade, mas ela contou-me toda a história, dos amigos e de como se sentia a diferente da turma, o que estava lendo, o que a tinha impressionado, queria parecer mais adulta do que se sabia, fiquei lisonjeado que todo aquele esforço fosse para mim, nem precisava aquilo, mas mantive o jogo como ela queria, estava se saindo bem.

Sugeri que parássemos para um café. Ela concordou que era uma boa idéia, sentarmos um pouco, sairmos daquele frio. Entramos, minha mesa preferida estava vazia, fui na direção dela como quem disputa uma corrida que só você sabe contra todo mundo que freqüenta ou não aquele lugar, até acelerei um pouco o passo ridículo. Quando puxei a cadeira para que sentasse, perguntei por perguntar se preferia outra mesa, ‘esta está boa’ – respondeu. Recusei o cardápio que o garçom me trouxe, não conhecia aquele, ou era novo ou só fazia aquele horário, não costumo vir de dia, pedi meu café de sempre, mas ele teve de abrir o cardápio para descobrir qual era o número do pedido que fazia, ela ainda se entreteu um pouco mais com os vários tipos de café que o lugar servia até que por pura indecisão resolveu acompanhar-me. Então eu desatei a falar sobre café, sobre o que bebia, quando dei por mim já estava falando de filosofia, de cinema, política, economia e de todos os assuntos que o jornal cobria – uma grande bobagem, mas os olhos dela brilhavam para tudo o que eu dizia, acho que os olhos dela brilhavam, gosto de pensar que sim, a história é minha. O que eu sei é que ela parecia ter ficado sem texto para falar comigo, é como se tivesse se dado conta de que não tinha se preparado o suficiente, tinha aquela expressão de quem acha que não tem mais nada de interessante para mostrar que sabe – ah como eu queria convencê-la do contrário, fazer com que ela entendesse o quanto sou também comum, inexpressivo, que não sei metade do que aparento, mesmo sabendo o risco que era quebrar o encanto. Nem sei porque estou escrevendo tudo isto, ela só me pediu que lhe fizesse ‘algo que tivesse anjos’, depois de me perguntar como era isto de escrever (como se eu soubesse). Respondi o que podia, qual era o meu método e como é mais simples quando você não cria muita expectativa sobre o que vai colocar no papel. Depois de algumas xícaras, doces, beijos, balas, cigarro, pedimos a conta e fomos embora. Nas ruas, aquela hora, havia um movimento maior de carros, as pessoas voltavam do trabalho, buzinavam, aceleravam, tinham pressa, não nos deixavam prestar mais atenção só um no outro, a cidade ao nosso redor reclamava um papel maior do que ´árvore’ naquela história, ainda assim não nos interessávamos muito, a nossa vida era somente aquela, do jeito que a vivíamos, do jeito que eu sei contar. Era somente isto que eu queria dizer para terminar, o resto deixo por sua conta imaginar, que dia da semana era, que trilha-sonora combina, como deve continuar.
Foto: Ricardo/ modelo: Gabi L.