sexta-feira, 28 de março de 2008

vida e obra

“... nada que eu sei é mais honesto do que esticar o braço e tocar...”

A vida é isso: isso que você ‘tá vendo. Olha ao seu redor, não se surpreenda, hoje eu não vim com palavras mais bonitas do que 'isso', nada que eu sei é mais honesto do que esticar o braço e tocar, as explicações não nos pertencem, emprestamos aos livros, só queremos dar a impressão de que tudo sabemos, gostamos que pensem que é possível um abraço que tudo englobe, um olhar que nada deixa escapar, um livro no final que conte todas as nossas experiências: o gosto disso, a graça naquilo, o beijo desta.

Tem vezes que ela vem e só se deita ao meu lado, nada, quer conversar – quer conversar e não quer, ela se concentra, procura as palavras certas, eu digo que as palavras certas não existem, que não tem problema se gaguejar um pouco, fizer silêncio, mudar para um assunto mais fácil, a gente tem a noite inteira, não faz sentido uma pressa que extermine tudo, o sol nasce, o dia vem, o tumulto é igual, corre-se de um lado para o outro, encontra-se, perde-se. Quando escrevo é como se eu interrompesse algo – interrompesse e ficasse observando ‘do lado de fora’ daquilo que eu vivo, sinto: agora mesmo posso observa-la mexendo-se na cama em meio ao sono, posso apagar a luz e me juntar a ela, posso me dar uma segunda chance. Uma segunda chance que já estava lá, não preciso escrever sobre ela como se fosse um deus interferindo nos destinos da humanidade, refazendo um caminho, abrindo o mar vermelho; mais do que escrevê-la, notá-la só agora, preciso fazer com que aconteça no exato instante em que ela me surge, em que ela se dá, não se trata do destino da humanidade, se trata de um quarto, ela, eu, terça-feira – algo que a gente sabe que respira.

Foi Heráclito quem disse que um homem nunca se banha duas vezes num mesmo rio porque nunca é o mesmo homem e nunca é o mesmo rio. Quando escrevo sobre algo que vivi não sou o mesmo homem que o viveu porque escrever não é experimentar tudo de novo como o antes desconhecido; escrever é julgar, é selecionar, é trazer à tona ou condenar ao limbo – e a vida não, a vida é isto, nada além deste segundo, desta palavra que você acaba de ler, disto que você acabou de pensar, deste rio em que agora você se banha, deste rio em que você nunca mais vai se banhar, desta pessoa que você se torna, desta que deixa de ser. Você pode me dizer o nome mas não revelar do que se trata, o que esta semana trouxe de novo para o que já tínhamos, o que ela apagou, revolucionou, rompeu, o livro que você leu, o livro que não foi até o fim, o que é sólido e o que é só fumaça. Cada idéia por mais louca, porque ela lhe ocorreu, porque você resolveu não correr atrás.
Foto de Jane Eyre Piego.

quinta-feira, 13 de março de 2008

em alguma daquelas janelas

Voltou a chover; levanto-me, caminho até à janela; cruzo os braços, aconchegando os seios; acariciando-me, abraçando-me, acompanhando-me. E olho: prédios com janelas, quantas janelas; possibilidades. Olho as janelas do outro lado da rua, pergunto-me se em alguma delas alguém olhará a minha janela; gostava que sim: que me espreitassem, me imaginassem uma vida, me fantasiassem. Alguém que me amasse durante um breve momento, e depois desaparecesse sem sequer revelar um nome; alguém que me surpreendesse a alma, e depois sorrisse; alguém que me compreendesse, e depois não sentisse necessidade de exibir essa compreensão; alguém que me acariciasse o cabelo, que o enrolasse nos dedos.

Todas estas janelas: possibilidades; todas estas possibilidades: quimeras. Vou-as percorrendo com o olhar, uma a uma. À procura, nem sei o que procuro, só sei o que procuro disfarçar. Depois, distraio-me com a chuva. Sinto frio. Sinto cansaço. Percorro a sala, vagarosamente, em busca do maço de cigarros; muito tempo depois, desisto de procurar. Sento-me no sofá, deito-me; aconchego-me, fecho os olhos.

Lembro-me, de repente: ele levou os meus cigarros. Penso nele, por fim. Uma outra vez mais: quando já não consigo adiar mais, quando sou incapaz de inventar novas distrações, novas fugas. E revivo tudo, momento após momento. Quando chego ao fim, retorno ao início; detenho-me nos pormenores, disseco-os um a um. Invoco os toques, os sons, os cheiros. Saboreio. Sofro. Espero. Espero o quê? Nada de mais; espero que o tempo venha e me leve com ele – simples assim, suficiente jamais.
Imagem: Edward Hopper, Eleven A.M., 1926.

“Em alguma daquelas janelas” assim como “No que estará pensando”, “O Velho Cinema” e “Ás quatro da manhã” – publicados anteriormente aqui neste blogue – faz parte de uma série de pequenos textos que escrevi inspirados nas telas do pintor norte-americano Edward Hopper cuja influência sobre este blogue não se limita a estes textos mas espalha-se pelos demais com maior ou menor intensidade e também pelas fotos que ilustram muitos deles.

sábado, 1 de março de 2008

carol sem explicação

Ela foi falando e eu achei que cabia

Eu tenho uma história também. Acho que é mais uma forma da gente sobreviver por mais um tempo na vida do outro, isto de contar o que é tão íntimo, o que a gente acha que pode mudar alguma coisa. Mas se você quiser eu mudo de assunto: falo só que estou com pressa, que não sei como vim parar aqui, que esta noite era para ser definitiva e ela só está me matando. Você me deu seu último cigarro, achei que isto era importante, contava, é que eu não vivo na mesma lógica que a sua, eu tenho um outro conjunto de regras, eu recolho vira-latas na rua, já me cortei bastante também, eu sei quando algo se esfacela nas nossas próprias mãos.

Mas eu estava dançando até agora, você viu como eu parecia feliz? Queria que aquela música não parasse nunca porque existem festas demais eu sei mas é que entre uma e outra é como se eu não tivesse nada inteiro. Foi por isto que você me convidou e eu vim, não tem nada de especial naquela cama bagunçada, meu corpo não explica nada, é como ter sede e beber água, eu posso me levantar e sair andando como se não estivesse sangrando. Você é que acha que eu nunca vim aqui, eu já vim aqui milhões de vezes nos últimos meses, você é que não tinha essa barba nem tinha lido todos estes livros. Fui eu que permiti e não você quem me dobrou. Embora o gosto na boca seja o mesmo para ambos.

Pode ser que amanhã eu deite e role e que você me traga sua alma na bandeja. Não tenho certeza, não tenho certeza de mais nada, nem do que aconteceu nem do que vai acontecer. Eu só não queria que tivesse esses momentos em que tudo congela, a gente fica dividido entre milhões de coisas, será que me mando, será que consigo não levar um pouco de você comigo. Eu ficaria bem de personagem sua, você me controlaria, faria amor comigo em vez "disso" e eu suspiraria. Inventa um outro ritmo para mim, um outro cigarro do nada, faz mágica, qualquer truque que eu acredito, algo que não nos devolva ao mundo real depois que acaba. Não quero acordar e descobrir que é a vida.
Foto: Julia Sweet, da série Hello Stranger, 2005.