terça-feira, 24 de março de 2009

notícias à-toa

Escreva, ela me pede, é simples, você tem meu endereço, papel, caneta, sei onde os guarda, na segunda gaveta junto dos poemas que não me disse, das fotos que não ficaram boas, lugares que ficou de me levar. Não me fale do que tem ou não saudade, prefiro notícias à-toa, nem boas nem más. Conte-me que hora tem acordado, quero saber se ainda temos os mesmos horários, de que lado da cama tem dormido agora que não a divide mais comigo. Quantos cigarros têm fumado por dia, quanto tempo demora para uma nova poesia e o seu romance – em que pé está? Não esquece de me avisar quando será publicado. Falando em livros o que tem lido? Algum novo autor que mereça ser conhecido? Tem uma livraria perto de onde trabalho, às vezes passo por lá carregando você comigo, meu gosto e o seu foram ficando tão parecidos. Costumo ouvir nossos discos enquanto preparo o jantar, você abria uma garrafa de vinho, eu fazia uma salada de tudo o que a gente gostava, deu vontade de perguntar se tem se alimentado direito, fiquei de ensinar você a cozinhar. Tem ido ao cinema? Voltou ao nosso bar? Sabe alguma piada que possa me contar? Eu quero rir, eu quero ficar sem ar, eu quero me vestir de uma cor que sei que ia gostar. Mas não me escreva uma linha sequer sobre a mulher com quem você está, não me diga nada sobre a cor de seus cabelos, os móveis que ela mudou de lugar, quero tudo igual como me lembro, com a torneira da pia do banheiro ainda por consertar. Foto dela: Lara.

quarta-feira, 18 de março de 2009

foi para isso que viemos

Vamos dizer que foi apenas uma carona. A gente ia para o mesmo lado – o que não deixa de ser verdade. Natural que, no caminho, falássemos do passado. Das viagens que fizemos, das noites que tivemos, o que trazemos guardado. Notou que eu não tirava os olhos dos seus lábios? Eu queria beijá-los ali mesmo, só esperava o momento certo, quando estivéssemos apenas você e eu, queria evitar comentários do tipo eles voltaram. Soube que você se separou recentemente, você me diz que já faz mais de um ano, eu não estou mais saindo com aquela advogada, nem sei de que advogada você está falando. Você me pede que entre à esquerda no fim da rua, está morando na casa que foi dos seus pais, pergunto deles, estão bem, pergunto por perguntar, no fundo estou pensando que aquela será a primeira vez que faremos amor depois de sete anos. As crianças foram passar o final de semana com o pai, não consigo te imaginar como mãe, não neste vestido, muito menos sem ele. Nossos corpos são velhos amigos, se reconhecem na cama, o tempo nos mudou e mudou o que sentimos, não temos mais ilusões sobre o amor, aceitamos a honestidade do sexo, foi para isso que viemos. Foto: Ricardo/ dela: Renata.

terça-feira, 10 de março de 2009

a última pessoa no mundo

“... no dia em que fui mais feliz/ eu vi um avião se espelhar no seu olhar até sumir...”
(Antonio Cícero)

Era a última pessoa no mundo que eu esperava ver no dia de hoje. Você disse ‘estou na cidade’ como quem diz ‘em cinco minutos, estou aí’. Eu não tinha como dizer que não. Dei uma ajeitada no cabelo, vesti algo decente, demorei algum tempo na frente do espelho, decidia se fazia a barba ou não e o que você acharia – mas que bobagem a minha. Parece até que está de volta. Como se a vida tivesse disso. Eu estou apenas no seu caminho. Vamos conversar sobre o que anda fazendo, eu não farei muitas perguntas, não quero descobrir muita coisa, se está feliz, se foi melhor assim, talvez até mude de assunto, o calor dos últimos dias, o resto de bolo na geladeira. É do meu aniversário, você sabe e me trouxe um presente. Tira da bolsa um embrulho. Nem preciso abrir para saber que é um livro e algo que provavelmente não vou conseguir ler mais do que os primeiros capítulos, mesmo com você dizendo que ‘leu, gostou e se lembrou de mim’. Posso dizer cada segredo seu, lembrar de cada vestido que despiu para mim, cada noite e música que tocava, cada vez que voltava de uma viagem mais longa e você ainda não sabe os gostos que tenho, que livro comprar para mim. Mesmo assim seguro seu braço quando faz menção de partir. Você volta e me dá um beijo – um beijo que dura seis anos e sete meses se fizermos as contas direito. Estou pensando nisso – estou aqui fazendo as contas – enquanto seu táxi ainda está na Doutor Arnaldo, parado em algum semáforo. Foto dela: Karine.

domingo, 1 de março de 2009

eu me lembro de você nesta cama

Eu me lembro de você nesta cama enquanto troco o lençol, a fronha dos travesseiros. Parece que ainda posso ouvir a música que nossos corpos compunham quando fazíamos amor. Começava num ritmo lento, depois ia crescendo. Muita coisa se passou, lembro e me esqueço, mas às vezes você me invade como se eu nunca mais tivesse sido o mesmo. Dentre as camisas no armário, escolho a última que me comprou, só depois é que percebo, lembro de quantas vezes a desabotoou, da sua boca no meu peito. Nunca tínhamos tempo, mas você dizia que dava tempo e a gente saía para o trabalho com um sorriso de orelha a orelha. Escuto no rádio do carro que o trânsito segue lento, calculo quanto tempo daqui até o jornal e daqui até seu apartamento. Escrevo sobre a crise mundial e o bom desempenho do governo, mas o que eu queria mesmo era rabiscar um poema de como me lembro. O telefone toca pouco para o meio-dia, um convite para almoçar, sinto a sua falta, mas preciso continuar comendo. Talvez eu vá ao cinema, talvez eu volte mais cedo, talvez escreva seu nome no corpo de outra mulher com a ponta dos dedos, ela me pergunte o que escrevi e eu diga que é segredo. Cheguei a pensar que era você quem cantarolava agora no chuveiro, mas esta não tinha aquele seu sotaque do rio de janeiro. Eu me lembro de você nesta cama enquanto troco o lençol, a fronha dos travesseiros. Foto: Ricardo/ dela: Quel.