quarta-feira, 29 de agosto de 2007

a última da noite

“Lay lady lay, lay across my big brass bed…” (Bob Dylan)

A última da noite ainda ecoa na minha cabeça. Tenho planos para mais uma vida mas acho que não vai dar tempo de viver tudo, então faço escolhas, cometo erros, tento o que machuca menos, ledo engano – sei que será inútil prendê-la aqui mais do que um desejo: primeiro queria que ela se jogasse, fiz de tudo para que me adorasse, ela veio e se deitou, ambos temos fome de que algo aconteça. Podia não amanhecer nunca mas amanhece. Ficarei da janela – minha torre de marfim – vendo ela se afastar, o sol a torna ainda mais bela, vejo como é bom longe de mim, aqui dentro falaríamos de escuridão. Minha pele saberá seu nome até que outro corpo venha e apague. Estou escrevendo assim para que se torne verdade mas minha pele sabe que não é tão simples.

Tenho que atender o telefone, dizer que não estou, desculpar-me por cada verso, fiz ela imaginar coisas que eram até reais demais quando eu dizia quase que sem controle, estava embriagado de seus lábios, da sua juventude, da sua rebeldia, da música que só a gente ouvia. Queria que não houvesse começo fim mas que tudo acontecesse fluísse naturalmente a gente se encontrasse era feliz amigos que se apaixonassem todos teríamos mais o que fazer onde dormir sem perder a cabeça sem parar para refletir uma vida que todo mundo aproveitasse onde nada doesse nada sangrasse deixasse uma flor onde se amou. Ela ficava me ouvindo falar assim. Não sabia dizer se eu era mau cruel ou a melhor coisa que já andou sobre a Terra se eu queria o bem de todo mundo ou só o meu.

Existem milhões de festas, noite como esta, pessoas como nós, gente que você nem sabe o nome e a solidão e corpos e mais corpos e depois mais corpos e no meio disso tudo o nosso. A gente é pequeno, a gente é frágil, a gente quer quem torne tudo mais fácil, diga na nossa língua, corra nos dar um abraço, procure um alívio, cale a boca por um segundo, nos ame e não pare, nos ame e não pare, nos ame e não pare...
Foto: Ricardo Pereira/modelo: Dana Dinha

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

às feras

para você

Funciona igual um brinquedinho novo. Enquanto você não esgota todas as suas possibilidades não quer brincar de outra coisa. Amor é só um nome mais limpo. Por que você tem sempre de ser tão cruel com as palavras? Nem parece um poeta – ela reclama do quarto, estou escolhendo uma música. Você prefere que eu minta ou diga que te amo do único jeito que sei, isto é, honestamente? Ela quer ouvir sobre o taj mahal – histórias de amor e glória onde homens e mulheres têm suas necessidades mais básicas como fome e sede satisfeitas não lhe atraem.

Ora trago ela para o chão ora carrego ela sobre os ombros, depende do meu humor, da minha fantasia para aquele dia, do que comi no almoço, do que li no jornal, deste “navegar impreciso” que é a vida. Ela tem dúvidas sobre até aonde vamos com aquilo. Prometo que seremos felizes, que teremos filhos, que lhe trarei flores, que telefonarei no dia seguinte, que apagarei qualquer vestígio quando for embora de manhã, que você nunca mais vai ouvir falar de mim.

Todos estamos nos empurrando uns contra os outros. Ninguém mais é “novo”, inocente, principiante, todos já fomos violentados, lutamos contra as regras mas somos por elas educados, é o medo da solidão que nos atira às feras, depois de um tempo nos tornamos também feras, botamos para funcionar nosso velho e bom instinto de preservação: devora ou será devorado. Vê, seria mais fácil te iludir, mas sua pele é rosa, é branca, é jasmin, não quero nela as mesmas feridas feias cicatrizes que trago aqui e aqui.
Foto: Renata Punk.

domingo, 19 de agosto de 2007

Anna Karenina

“... a transcendência dos livros é assim como o amor solto no ar, mas a materialidade dos livros é como o corpo do amor na cama, a noite inteira lendo e relendo...” – de uma outra conversa

Acho que já nos conhecemos. Tive a mesma impressão. Sugeri que talvez fosse dos muitos livros que lemos e ela sorriu como quem se lembra exatamente em qual romance ficava a rua em que nos cruzamos. Foi fácil esquecer de todos os outros assuntos que giravam em torno de nós, refiro-me aos vulgares – típicos de mega-stores. Falávamos dos livros como quem conta peripécias da juventude num país estrangeiro. Conhecíamos a língua, os rios e o cheiro.

Não tenho muito tempo. Privilegio livros e beijos. A vida é inútil se só se ganha mais dinheiro. Até mesmo o desejo mais caro acaba numa liquidação. Dê um tempo que tudo será resto. Corro os sebos da cidade em busca dos clássicos que me faltam e a noite de mulheres que ainda saibam ser seduzidas por eles. Certas conversas não me interessam mais, eu quero trazê-las para a minha festa, lá dançaremos, serão muitas páginas, música e vinho.

Descobrimos, claro, muitos amigos em comum, às vezes até séculos inteiros, confissões que ouvimos, beijos que espiamos, camas que dividimos, noites que nos apaixonamos. Ela não era livre nem eu naquele dia. Pensamos em algo sorrateiro, no saguão ela me deu o nome de Anna Karenina, eu gostei da brincadeira e assinei Vronski. Durante algumas horas era a Rússia czarista lá fora. Fechamos o livros e nos despedimos. Mais tarde sussurrarei esta história no ouvido de outra mulher – de Emma Bovary talvez.
Foto: Ricardo Pereira/modelo: Bruna S.

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

uma hora e meia

para N.

Eu estou aqui e você esteve aqui. Uma hora e meia. Pouco. Quase nada diante da velocidade do mundo. Mas quer saber de uma coisa? Nada mais importa, nada mais interessa, nada mais com o seu gosto, com as suas idéias, vivo numa cidade poluída e você me ensinou uma avenida que dá no mar, vou procurar você nas músicas que ouvir e sei que vou encontrar. Sua voz triste me lembra que às vezes temos de voltar à vida real. Eu inventei uma vida-poema para que você nunca fosse embora, todas as outras mulheres da minha literatura só servem para me dizer que você existe e não é uma delas. A gente bem podia caber naquele disco tocando – de quem é este sentimento na vitrola girando?

Eu estou aqui e você às vezes demora. Tem o trânsito tem a guerra lá fora. Todo dia que nasce para ser a mesma coisa. Sei que preciso pagar as minhas contas, não dá para ser poeta sempre, no jornal é aquela farsa de a culpa é dos políticos etc e tal, na volta para casa é tanta miséria que tomo um tiro, preciso do seu silêncio, da sua paz, desta uma hora e meia que tanta diferença faz. Estou estudando uma fórmula para que você fique, para que você fique mais, seja para sempre, não como um segredo que me anestesia um pouco, mas como uma cura definitiva, o fim da história.

Eu estou aqui e você temo que vire fumaça. Existem todas estas horas em que você não vem me chamando para a rua. Eu não sou tão forte como lhe prometi, preciso de um vício que dê conta, meu nome numa outra boca, malditas sejam todas as uma hora e meia do meu desejo – porque sempre às migalhas se a fome é de uma vida inteira? Um dia quando não mais ligar o corpo à paixão, você poderá ser qualquer chance, estarei acima do amor, livre para ser escritor: sua lembrança – a dor e a verdade – será só da personagem e você-real apenas miragem.
Foto: Ricardo Pereira/modelo: Belinha

domingo, 12 de agosto de 2007

os livros

“(...) Para Tereza, o livro era o sinal de reconhecimento de uma fraternidade secreta. Contra o mundo de grosseria que a cercava, não tinha efetivamente senão uma arma: os livros que pedia emprestados na biblioteca municipal; sobretudo os romances: lia-os em quantidade, de Fielding a Thomas Mann. Eles não só lhe ofereciam a possibilidade de uma evasão imaginária, arrancando-a de uma vida que não lhe trazia nenhuma satisfação, mas tinham também para ela um significado como objetos: gostava de passear na rua com um livro debaixo do braço. Eram para ela aquilo que uma elegante bengala era para um dândi do século passado. Eles a distinguiam dos outros. (...)” (de A Insustentável Leveza do Ser, Milan Kundera)

Quando estou em casa passo a maior parte do tempo na "biblioteca". Chamo de biblioteca embora funcione mais como um escritório. Foi o único aposento da casa em que não arredei o pé quanto à distribuição dos móveis pelo ambiente. Deixei o restante da casa aberto a toda a sorte de palpites. Vem uma namorada e coloca os móveis da sala, dos quartos, numa ordem, outra mais tarde vem e os arrasta como se assim apagasse quaisquer vestígios da ex. Eu apenas sorrio concordando como se aprovasse inteiramente quando no fundo tanto faz. Elas se sentindo à vontade está tudo bem para mim. É na biblioteca que as testo.

Uma das primeiras coisas que faço quando trago uma mulher em casa é apresentá-la a eles: os livros. Fico na minha observando o modo como elas se comportam diante dos livros, correndo os olhos pelos títulos como que a procurar algum velho conhecido, ou escolhendo um deles para folhear. Como aprecio os livros, gosto de mulheres que tenham o mesmo interesse. Uma vez comentei que a primeira coisa que reparava em uma mulher era justamente o livro que ela estava lendo. Uma licença poética, naturalmente, mas todos nós temos direito a uma licença poética.

É fácil identificar pela maneira como uma pessoa manuseia um livro se se trata de um objeto estranho às suas mãos ou se íntimo. Elas não entreabrem o livro num página qualquer lá pelo meio, elas primeiro procuram se informar sobre aquele objeto deslizando os dedos suave e carinhosamente pela sua capa enquanto examinam o que diz a orelha, depois vão folheando lentamente página por página até chegarem ao primeiro capítulo, lêem um ou dois parágrafos para sentirem o grau de tesão que o livro exerce sobre elas: paixão ou curiosidade. Não estranhe se terminarem a inspeção aproximando o livro de suas narinas como se através do cheiro pudessem extrair a qualidade do livro com a mesma precisão que um enólogo busca atingir ao aspirar o aroma de um vinho.

Confesso que se a mulher tiver outros atrativos interessar-se pouco ou nada pelos livros não será obstáculo algum para engatarmos algo. Entretanto dificilmente vou conseguir com esta mulher a mesma cumplicidade que desenvolvi com outras mais leitoras. É comum que pergunte à uma mulher pela qual esteja atraído se já leu "A Insustentável Leveza do Ser", do Milan Kundera. Caso a resposta seja negativa ofereço de presente um exemplar (sempre que encontro o livro numa sebo em bom estado compro um - tenho no momento três deles no estoque), caso já o tenha lido peço a ela que responda-me se se identifica mais com Tereza ou com Sabina, as personagens femininas do romance. Dependendo da sua resposta saberei melhor o que esperar daquela mulher. Eu tenho, obviamente, uma preferência por um dos tipos, mas não revelo, comprometeria o teste.

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

romance barato

para bruno ribeiro e geraldo magela,
dois perdidos na noite suja

A desculpa para a fila andar tão depressa é a busca por uma garota que seja definitiva. Do mesmo jeito que escrever um romance não pode ser escrever qualquer romance, tem de ser algo definitivo, o primeiro e último, do tipo antes e depois. Enquanto isto não acontece, nem uma coisa nem outra, vamos nos acostumando com trepadinhas e ambiciosos projetos literários que nos mantém vivos. Então não achar a história certa passa a ser uma desculpa também. Se sua vida é (e todas são) apenas mais uma, você finge que não, porque no seu íntimo há um romance sendo escrito e reescrito todos os dias.

Então a garota da vez chega na porta do seu escritório, enrolada no edredon, reclamando sua ausência ao lado dela na cama, tá frio, diz ela, quer quem a esquente. Não é nem de longe um pedido, é uma ordem, você atende, para tudo o que está fazendo porque trepadinhas assim viciam e a ilusão do grande romancista já se desfez. É que você teve uma idéia maluca, pensou que era algo super original, incrível, que ninguém nunca tinha pensado antes e valia a pena arriscar, ou porque estava embriagado demais ou porque acabou de dar uma especialíssima e correu para o computador confundindo orgasmo com inspiração. É que nesses minutos após uma bem dada (daquelas em que damos graças a deus por termos nascido homens) você tem todo o direito de se sentir o cara mais foda do mundo. A garota ali do seu lado é uma mera coadjuvante: fácil demais para você propor algo sério, ainda que você se arrependa de ter insistido tão pouco depois que elas se vão. Tudo bem que na noite seguinte será outra. É que trepadinhas assim viciam.

Neste tempo entre uma e outra você oscila entre o fracasso e a genialidade. Não avança uma linha sequer em seu clássico da literatura mundial. Só se realiza mesmo quando vai quebrando pouco a pouco a resistência da ninfetinha, esta coisa vulgar de dizer o que ela quer ouvir, de libertar ela de tudo o que a prende ao chão, de parecer grande quando não passa de um pulha. Então você acha que a grande diferença entre seus poemas e os grandes poemas é esta mesmo: os caras escreveram aquilo para serem grandes, geniais, estudaram a coisa, capricharam pacas; e você, nada disso, escreveu aquilo com um único fim: papar a princesinha. E nem precisava tanto, ela nem sabe quem é Modigliani, para que meter um verso em meio aquela zoeira de palavras todas comparando a beleza dela com um Modigliani? A garota nem consegue dizer o nome do autor de Crime e Castigo e você só faz achá-la mais “desfrutável” por conta disso. Depois ela ri como se fosse de uma piada quando você lhe diz só o primeiro nome do russo: Fiódor.

Nunca vi tantos livros, ela diz, passeando sem interesse os olhos pelos títulos de sua estante. Então esta é a minha última conquista: uma estudante de relações públicas. Houve tempos em que eu era mais profundo, acho que agora eu estou querendo provar algo imbecil para mim mesmo. Uma coisa meio machista do tipo você ainda pode. Você gostaria é de ser Charles Bukowski mas sabe que não agüenta o tranco, é sensível demais para isto. O mundo das ruas te excita mas você prefere usar sua força para abrir uma garrafa de vinho.

Garotas assim não podem com um Lambrusco, é o máximo de classe que conseguem atingir. Duas taças e ficam molinhas molinhas. Os caras da idade dela não sabem tratar uma mulher, só sabem falar de filmes de ação e carros. Elas ali se achando as coisas mais espertas do mundo, as maduras, as ‘cabeças’, as experientes, só porque estão na toca de um sujeito que tem idade para ser o professor delas. Querem aprender, eu ensino. Disso não vai sair um romance. Eu bem sei e é uma droga. Quem sabe um conto desses que as editoras recusam porque você ultrapassou o limite permitido de divagações entre as obscenidades.

Proust não precisou de uma coisinha linda dessas para escrever uma linha que fosse. Papel e tinta foram suficientes. E eu com esta tecnologia toda dizendo “vem me amar gostosinho” faço da minha literatura um amontoado de papel amassado. Não é a garota certa nem o romance certo. O problema é que eu estou me viciando além da conta nestas trepadinhas. A garota com a cabeça entre suas pernas e você pensa no romance barato que está escrevendo noite após noite. Sei que alguém vai gostar, vai dizer que é demais, mas é só a opinião de algum perdido na noite suja, os críticos vão me dar uma recepção seca, não demora e saio por três reais numa sebo da cidade. Todo mundo me folheia mas ninguém me leva. Na orelha algo do Bruno, falando mais do sujeito que de seu livro. Na capa um nu feminino. Um título assim sem dizer muito – “numa balada só” – e o meu nome um pouco abaixo. Acho que estou começando a gostar da idéia.
Foto: Ricardo Pereira/modelo: Renata Punk

terça-feira, 7 de agosto de 2007

simples me faz sentir leve

Simples me faz sentir leve. Tenho minha forma de ver o mundo e ela tem a dela, às vezes o melhor que fazemos é mudar de assunto. Não preciso que ela vote no mesmo partido, apenas que dance comigo, depois conversaremos sobre vinhos, livros e beijos. Não vamos cutucar deuses, diz ela, entender tudo o que se passa faz com que as coisas percam sua graça, quantas cores existem no mundo que eu ainda não sei – quero inventar nomes para cada uma delas. Penso que o seu caíria como uma luva para um novo tom de lilás que imaginei.

Sou um homem cheio de lutas sendo travadas, venço algumas, perco outras, existem aquelas que serão para sempre como a miséria, o preconceito, a falta de educação das nossas elites, para ela eu só me preocupo demais, preciso arranjar o que fazer porque me sinto muito burguês para o meu marxismo, ela é cruel quando bagunça tudo ao meu redor, eu me sinto só sem certas fugas, fazemos parte do mundo e dele não escapamos. Ela me pediu um poema de amor que fosse só para ela. Eu tentei. Não agüento mais ser só uma perna, uma noite, um riso, quero algo profundo como você entrar em mim e nunca mais sair, sei do que ela está falando.

Não consigo sair de uma página e ela com a tarde livre, me liga e nos despimos de tudo, ficamos suaves como quando nos conhecemos e não sabíamos das armadilhas um do outro, ela quer saber sobre o que será meu novo post, digo que não sei, não estou pensando nisto agora, mas você estará nele – procuro a essência dos estados de felicidade, estes mais ingênuos como descalçar os sapatos e observar da janela do quarto o céu e as nuves tomando forma de “coisas” da nossa cabeça. Da vida não pretendo mais do que boas lembranças. Estou no meio de uma autobiografia de encontros furtivos: cabeças vão rolar.
Foto: Dana Dinha

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

o que um poeta tenta ser

Invejo os escritores que vão nos mínimos detalhes. Não me refiro aos pornográficos – embora respeite e entenda a sua arte. Neles vigora uma fé nos corpos e tão somente uma fé nos corpos. Eu escrevo sobre corações. O meu, conheço um pouco melhor. Dos outros, apenas aqueles dos quais aproximei meu ouvido para escutar o que “diziam”: vocês já ouviram canções de amor? Não, vocês nunca ouviram canções de amor.

O que eu sou? O que um poeta tenta ser. Na vida já fiz de tudo e sei que ainda há muito por se fazer. Eu tenho um romance por escrever, cada página é um dia que acordo, cada mulher que encontro pode representar uma mudança considerável em meus planos, por isto estes fragmentos de um discurso amoroso – estou aberto à sugestões, quem souber um beijo novo, uma palavra mais simples que “amor” ou uma solidão de noite me conte, quero saber. Preciso de mais, não há descanso para quem respira só o que o inspira.

Não sou artista, sequer ouso, a Cris é que era – no pouco tempo em que moramos juntos eu apenas a observava enquanto “trabalhava” (como quando contemplamos o mar ciente de que não estamos à altura): queria ver através do seu olhar, tudo o que eu conseguia enxergar se limitava ao que eu entendia de “poesia” em corpos nus – mas não demorava e chegava o instante em que meu desejo de tocá-las e lambuzar-me delas superava o “poeta”. Não é o equilíbrio que me atrai mas o que me faz balançar.
Foto: Nelson Luis Abrahao

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

bom dia

“... é do cotidiano que nascem as melhores histórias. De amor, por exemplo...”

"Vem ver o sol que lindo", diz ela me chamando até a janela. Nada veste além de uma calcinha. E eu lá tenho olhos para o sol. Aproximo-me dela e ganho um beijo. Bom dia. Bom dia. Ela me abraça como se não fosse me soltar nunca mais. Parece mesmo muito feliz. Não entendo o porque: é um dia como qualquer outro no mundo. Então me olha fixo nos olhos como se tentasse me passar uma mensagem por telepatia. Chega mesmo a franzir a testa de tanto que ela se concentra em penetrar meus pensamentos. E quando eu acho que ela vai me dizer algo incrível que merecesse tamanho esforço escuto "mentalmente" ela dizer que vai tomar um banho.


Diante do espelho eu encaro meu rosto como se aprovasse a espécie de sujeito que me tornei. Nem sempre é assim. Preciso fazer a barba não preciso fazer a barba. Esta é a primeira decisão do dia. Mas virão outras. Ela abre a porta do box e reclama uma toalha. Antes de passa-la às suas mãos faço uma pequena brincadeira dessas idiotas: quando ela estica o braço para pegar a toalha eu a afasto do seu alcance. Ela ri da primeira vez mas depois bronqueia. Enquanto ela se enxuga diz alguma coisa que eu não entendo direito mesmo assim não pergunto do que se trata apenas concordo com a cabeça. Estou pensando em outra coisa: penso que na maior parte do tempo nem é amor, apenas cumplicidade, intimidade, quer melhor que isto.


Quando ela passa por detrás de mim eu me viro e a seguro como se lhe aplicasse um golpe que treino há semanas. Um beijo fundo acompanha a imobilização. Então ela fica um tempinho mole depois força para que eu a solte. Dou um tapinha em seu bumbum antes que ela se afaste. Ela faz uma careta depois me dá às costas. Não tiro o olho de seu traseiro até que ela suma para o quarto. Vou demorar a vê-la novamente assim como veio ao mundo, preciso aproveitar cada segundinho. Entro no chuveiro e me esqueço um pouco do tempo. Acho que passam uns dez minutos para que eu me ligue novamente na vida. Ensaio pressa.


Quando deixo o banheiro dou de cara com ela já vestida sentada numa poltrona com uma deliciosa expressão de inocência na face como se nada tivesse a ver com aquela cama desarrumada há poucos passos dela. Enquanto troco de roupa ela retorna ao banheiro para se maquiar. Pergunto se ela quer comer algo. Ela diz que está com pressa. A primeira aula dela é dali meia-hora. Da minha casa até a faculdade são uns vinte minutos. Tempo mais do que suficiente para um café.


Então eu passo a me mover como se fosse um senhor de noventa anos apenas para irritá-la. Insisto para que ela tome o café comigo. Eu mesmo estou sem fome mas não entendo estas mulheres que depois de passarem a noite com você agem pela manhã como se fossem meras visitas. Ela abre a bolsa e consulta uma agenda. "O que você vai fazer hoje à noite?", ela pergunta. "Fazer amor com você", eu respondo. Ela sorri e anota algo. Gostaria de saber o que.


Mais tarde na faculdade nos cruzamos em um corredor. Ela está com umas amigas. Não faço idéia do que conversam mas ficam todas em silêncio quando vêem um professor e eu vindo na direção delas. Ela me cumprimenta com os olhos como se há poucas horas atrás não estávamos os dois na mesma cama. Eu faço o mesmo. Elas passam por nós e o professor Homero insinua alguma coisa. Eu nem digo que sim nem digo que não. Foto: Ricardo Pereira/ modelo: Bruna S.